A primeira conversa do dia (ao
levar minha filha para a escola, ela vai muda:) é com Serginho, o chapeiro
especialista em baguete com casquinha, no balcão da padaria. O tema geralmente é futebol. Daí,
ao me ver entretido com uma leitura, perguntou-me se eu estava lendo
sobre o São Paulo “dele”. Provoquei o torcedor do outrora glorioso dizendo que
não me interessava por temas que eu não podia mudar. Estava agarrado mesmo com um
relatório sobre as desigualdades entre “as condições de saúde materno-infantil
entre os países”. Com cara interrogativa e na iminência da baguete torrar, Serginho
me perguntou: E dá para mudar isto?
O relatório “A Brecha Assassina”,
elaborado pela World Vision (Visão Mundial) tem a clara finalidade: Mostrar
aonde as crianças seguem morrendo sem necessidade (19.000 por dia, de causas
evitáveis/tratáveis!) e como reverter este quadro. Para isto, o relatório sai
dos tradicionais rankings de medição nacional (aqueles o campeão é sempre a
Suécia ou a Finlândia) e mapeia o fosso intranacional, isto é, a desigualdade interna
nos indicadores de saúde infantil entre os pobres e ricos, dentro de cada país,
segundo 4 indicadores:
- Expectativa de Vida: Esta medição mostra as atuais desigualdades na expectativa de vida entre grupos de pessoas e diferentes áreas de um país, incluindo mortes neonatais e de menores de cinco anos.
- Custo de Pessoal por Uso de Serviços de Saúde: Medido através de um indivíduo faz pagamentos do próprio bolso para cuidados de saúde.
- Taxa de Fertilidade (Adolescentes): Evidências mostram a correlação entre sobrevivência e idade da mãe (ligada à renda, escolaridade e condições físicas). Logo, a taxa de fertilidade na adolescência é uma representação da capacidade de grupo de população para sustentar seus filhos.
- Cobertura dos Serviços de Saúde: Medido pelo número de médicos, enfermeiros e parteiras por 10.000 pessoas em um país. A evidência mostra que os países com menos de 23 médicos/enfermeiros/Parteiras por 10.000 pessoas são incapazes de chegar a toda a população com serviços essenciais de saúde de forma adequada. Medico cubano conta na estatística :-)
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A primeira constatação de quem lê o sintético relatório é que a brecha é um abismo. Além do idioma que falarão uma criança nascida na Franca e outra no Chade não têm nenhum destino comum. Já sabíamos pelos relatórios tradicionais que a africana terá quase 280 vezes mais chance de morrer, antes de completar os 5 anos de idade, do que a francesa. Já era ruim? O Relatório da WV mostra que a criança pobre chadiana tem quase 1800 vezes mais chances de morrer, antes de completar 5 anos que uma criança de classe média francesa.
A segunda constatação é que
dinheiro não é tudo. Vários países ricos têm brechas internas de saúde mais
altas do que países de renda média ou mesmo baixa. Itália, Coreia do Sul não
estão sequer entre os 20 menos desiguais para crianças. EUA quase está fora dos
50 melhores. Todos perdem para Cuba, Bielorrússia, Uruguai e Tonga. Nota do
Autor: Não sei esta “Tonga” não é a mesma da Tonga da Mironga do Kabuletê kkk
Mas, o abismo não para aí, embora
não demonstre o relatório, há ainda as diferenças subnacionais, as determinadas
pela geografia na qual a criança nasce. Crianças pobres de regiões remotas são ainda
mias prejudicadas do que as de regiões urbanas, mesmo quando têm faixa de renda
equivalente. São as desigualdades
sobrepostas: renda, idade da mãe, região e etnia. Dentro de países altamente
desiguais, como Brasil, África do Sul e Filipinas, uma criança nascida de mãe
extremamente pobre, jovem e de minoria étnica tem em média 13 vezes mais chance
de morrer antes dos 5 anos do que outra, de uma mãe branca de classe média da
capital. Menos do que os mais de 150 vezes de há 20 anos, mas ainda feio.
Por ter seu foco na faixa da
mortalidade infantil (abaixo de 60 meses), o relatório também não aponta para
as desigualdades de mortalidade até o final da adolescência. As geradas por “causas
externas”, principalmente a violência. Se este dado lá estivesse, veríamos que
um menino pobre negro brasileiro que vence as probabilidades contrárias e
sobrevive, terá 21 vezes mais chances de ser assassinado antes dos 18 anos.
Eis o abismo. E a colher? Bem, a
colher é a que eu, você, o Serginho e todos nós temos nas mãos para tapar este
abismo. Esta colher carrega somente um voto, uma voz, uma rede de relações, uma
ação, uma coalizão. Enfim, nesta colher cabem uma disposição, um compromisso e
uma ação. Desprezível? O próprio relatório aponta que não.
Para tapa-lo, ou ao menos
diminui-lo, é necessário entender o que provoca o abismo. E o relatório mostra que alguns aspectos que,
se resolvidos, poderiam tapar, em um intervalo de 10 anos, mais de metade deste
abismo. Pouco? Isto já representaria, nas atuais taxas de natalidade, salvar
mais de 3.000.000 de crianças por ano. Alguns dos fatores listados no relatório,
sobre os quais o Serginho tem poder de influência, são:
- Aumento do investimento (público e privado, aquele que vem do orçamento familiar) nos primeiros anos de vida, que é o período com o maior potencial de proporcionar boas condições de saúde para a vida.
- Políticas e práticas e estabeleçam infraestrutura, serviços e trabalhadores de saúde (Médicos/Enfermeiros/etc.) presentem em áreas urbanas periféricas e rurais.
- Condições de trabalho que respeitem os direitos e a condição feminina, já que a saúde e condições de trabalho da mulher estão associadas diretamente a sobrevivência e saúde da criança.
- Seguridade social inclusiva: Em todo o mundo, 4 em cada 5 pessoas não têm o apoio de cobertura social básica. Este item, no qual o Brasil está entre os 20 melhores do mundo, contribui para uma melhor saúde, incluindo menor mortalidade.
- Comportamentos sociais que: privilegiem a criança, pratiquem e disseminem igualdade.
De colher em colher, esta brecha,
construída, pode ser revertida.
Já quanto ao São Paulo do Serginho... Bem,
neste caso melhor uma pá, para ele cavar um buraco e se esconder de vergonha
até o time melhorar.
O relatório pode ser encontrado em: