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quarta-feira, 5 de março de 2014

As Notícias da Morte do Movimento Popular são um pouco Exageradas



Ciência é demolidora de consensos. Boa ciência serve para desdizer o que o senso comum, a timeline do facebook e a torcida do flamengo pensam ser verdade. E ciência da boa tem feito o mexicano abrasileirado, Gurza Lavalle (CEM, FFLCH-USP), brilhante herdeiro do tema de participação e movimentos sociais, na minha querida FFLCH.


Nos últimos 30 anos, os movimentos sociais, principalmente os da América Latina, foram muito estudados. Geralmente são identificados como atores essenciais nos processos de democratização. Seu desenvolvimento posterior à volta das eleições no continente, também é visto como uma evidência (causa ou reflexo, dependendo do analista) de uma suposta decadência democrática ou de uma “pós-democratização”, na qual a ação política se tornaria somente instrumental, neo-clientelista ou de "consumismo de bens públicos".

E 5 de cada 4 pesquisadores :-), parece identificar que, a partir dos anos 1990, houve uma mudança da sociedade civil e que ela se deu de forma substitutiva – isto é, com certos tipos de atores tomando o lugar de outros. Isso teria culminado, a partir de meados dos 90, numa preponderância das organizações não governamentais (ONGs), deslocamento que ficou conhecido como “onguização” dos movimentos sociais.

Associados à "Onguização", a maioria dos analistas identifica uma decadência (mais forte neste século) na capacidade de articulação e protagonismo politico dos movimentos. Tornou-se comum um “blues” de quando os movimentos populares eram ativos e fortes. Igual aos rubro-negros saudosos do time de Zico-Júnior :-) A tônica comum nas análises segue o consenso de que os movimentos populares, formados pelos próprios interessados nas demandas de mudança, teriam cedido espaço para organizações que também defendem mudanças, mas em nome de grupos que não são seus membros constituintes (Advocacy, na terminologia das ciências sociais). Essas ações supostamente teriam gerado uma despolitização da sociedade civil.

A pesquisa de Lavalle e equipe desmentem a tese da "Onguização".  Ele não entra no debate do que é ONG (este nome genérico, quase uma ficção linguística que coloca no mesmo saco gatos tão distintos quanto o Hospital Albert Einstein, o Asilo  Kardecista, a Consultoria disfarçada de ONG e a Associação dos Colecionadores de Carrinhos de Rolimã). Porém empresta da literatura tradicional a ideia da evolução dos atores sociais em  ondas distintas.  A 1ª onda seria a das organizações tradicionais, como as entidades assistenciais ou as associações de bairro (criadas em razão de demandas sociais de segmentos amplos da população, maiormente durante a vigência da ditadura). A 2ª onda, na qual as costumam ser agrupadas as organizações denominadas de ONGs e que, por sua vez deram origem às entidades articuladoras, aquelas que trabalham para outras organizações, e não para indivíduos, segmentos da população ou movimentos localizados).

A pesquisa utiliza como aproximação aos “movimentos sociais” são organizações populares, “entidades cuja estratégia de atuação distintiva é a mobilização popular”, como o Movimento de Moradia do Centro, a Unificação de Lutas de Cortiços e, numa escala bem maior, o Movimento dos Sem-Terra. Estas, na rede, estão em pé de igualdade com as ONGs e as articuladoras. Numa posição de “centralidade intermediária” estão as pastorais, os fóruns e as associações assistenciais. Finalmente, em condição periférica, estão organizações de corte tradicional, como as associações de bairro e comunitárias.

Em grande parte, a novidade da pesquisa se deve à aplicação de novas ferramentas, baseadas na análise de redes. A "Network Analysis" uma abordagem usada amplamente em Ecologia, Epidemiologia e Linguística. Ela detecta padrões de difusão, permite identificar estruturas indiretas e conexões. Assim, Lavalle e equipe começaram a superar as visões baseadas em abstrações ou em modelos teóricos mais ortodoxos do que o sistema de defesa de técnico gaúcho..

O método usado pela equipe para verificar a estrutura de vínculos entre as organizações foi o "bola de neve". Neste, cada entidade foi chamada a citar cinco outras organizações importantes no andamento do trabalho da entidade entrevistada. Adicionou-se a esta lista declaratória, as relações institucionais e financeiras.  Na cidade de São Paulo foram ouvidos representantes de 202 associações civis (as do tipo da primeira onda, excluindo portanto as "ONG's"), que geraram um total de 827 atores diferentes, 1.368 vínculos e 549.081 relações potenciais.

Quando analisadas as conexões, foi possível avaliar a influência das associações, tanto na sociedade civil quanto em relação a outros atores sociais e políticos. Esse resultado foi obtido por um conjunto de medidas que computam os vínculos no interior da rede, não só aqueles diretos ou de vizinhança, mas, sobretudo, aqueles indiretos ou entre uma organização e os vínculos de outra organização com a qual a primeira interage e aos quais não tem acesso direto. Assim, foi possível investigar as posições objetivas dos atores dentro das redes, assim como as estruturas de vínculos que condensam e condicionam as lógicas de sua atuação.

Essa rede permitiu identificar  as conexões políticas das associações. A sociedade civil se modernizou, diversificou-se e se especializou funcionalmente, tornando as ecologias organizacionais da região mais complexas, sem que essa complexidade implique a substituição de um tipo de ator por outro.  Em uma análise comparativa as Associações civis são mais conectadas do que as chamadas "ONG's".  vitalidade dos movimentos sociais, semelhante à das ONGs. As associações civis, formadas pelos próprios interessados, mostram conexões ativas tanto com atores públicos-governamentais/não-governamentais e privados. 

Assim, os estudos de Lavalle  contradizem a tese senso comum da “onguização”. Parafraseando Mark Twain, ao escrever a um jornal que havia noticiado sua morte: As Notícias da Morte do Movimento Popular são um pouco Exageradas :-) Todos os dados obtidos contrariam diagnósticos dos "viúvos dos anos 80", que insistiam de que a sociedade civil atual seria formada de organizações orientadas principalmente para a prestação de serviços e a trabalhar com assuntos públicos de modo desenraizado ou pouco voltado para a população de baixa renda.

Lavalle conclui que “as organizações civis passaram a desempenhar novas funções de intermediação, ora em instituições participativas como representantes de determinados grupos, ora gerindo uma parte da política, ora como receptoras de recursos públicos para a execução de projetos”. Absorver novos papeis não representou a perda dos anteriores, mas a sua transmutação. Assim, “as redes de organizações civis examinadas são produto de bolas de neve iniciadas em áreas populares da cidade e por isso nos informam a respeito da capacidade de intermediação das organizações civis em relação a esses grupos sociais..”

Outros estudos confirmam as conclusões deste trabalho, como os de Paulo Velho (UFES) e Lígia Lüchmann (UFSC) para quem “a sociedade civil é hoje funcionalmente mais diversificada do que costumava ser, com atores tradicionais coexistindo com os novos”. Assim, estudos como o de Lavalle vêm corroborar a ideia de que tendências mais visíveis não podem ser tomadas como hegemônicas e de que a sociedade tende a ser muitas coisas ao mesmo tempo. As classificações lineares ou evolucionistas servem para dar tranquilidade intelectual, ideia de controle e entendimento; mas não se verificam no tecido social. Para fora das portas da Universidade, o mundo segue extrapolando a teoria. 

Ao assumir a heterogeneidade e complexidade das organizações civis, há implicações não só para a análise, mas para a ação política e pública. Por exemplo, em relação à regulação sobre o terceiro setor. A heterogeneidade demanda um marco de análise menos engessado e, em tempos de definição do Marco Civil, pede leis menos restritivas, que não pretendam uniformizar; mas se concentrem em oferecer segurança jurídica.

Afinal,  já está cientificamente provado que a torcida do Flamengo está errada :-); logo a realidade não segue a opinião da maioria. Não concorda? Consulte sua timeline... :-)


Para ir além
  1. GURZA LAVALLE, A. e Bueno, N. S. Waves of change within civil society in Latin America: Mexico City and Sao Paulo. Politics & Society. v. 39, p. 415-50, 2011
  2. Mobilidade dos Movimentos Sociais, FAPESP, Fev 2014. MFerrari 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

MANDELA ou TIO BARNABÉ?














Mandela foi provavelmente o maior líder político do pós-guerra.

Mandela escapou da sina de "morrer novo como herói ou viver tempo suficiente para se tornar um vilão".

Mas, não conseguiu evitar a docilização de sua imagem, como Gandhi, transformado em líder hippie e Che, em estampa de camiseta de grife.

O mundo pop, com a ajuda do CNA, transformou Mandela em um papai, dançando, sempre sorridente e bonzinho.

Onde havia um líder de esquerda (comunista, não socialdemocrata budista de Higienópolis), duro, firme, que não se esquivou de articular e apoiar a luta e a resistência armadas; colocou-se a imagem de um papai-noel político, uma espécie "Tio Barnabé”, negro sábio e contente.

Onde havia um polemista, criou-se uma unanimidade. E a unanimidade é inócua. Onde havia Rolihlahla (nome de “batismo”, que em Xhosa, significa “que traz problemas”), surgiu o Madiba, algo como um ancião e guia de sabedoria.

Mandela foi forte politicamente. Demonstrou  sabedoria de Madiba e habilidade política para conduzir uma transição sem derramamento de sangue em grande escala. Foi um mestre político ao trocar o "perdão" aos brancos pelo poder para seu partido e pela anistia ao passado. Foi extremamente hábil e forte para  liderar a transição de uma sociedade formal e legalmente desigual em uma sociedade, ainda mais desigual, mas formalmente igualitária.

Mandela foi fraco administrativamente e, em troca da pacificação do CNA, entregou seu governo (e os sucessores) para uma elite partidária ineficiente como gestora pública e profundamente corrupta. De parte dos brancos, o preço que Mandela pagou foi acordar o esquecimento e anistia dos seus (e de tantos outros) algozes, torturadores, ativos agentes ou simplesmente coniventes com as décadas de Apartheid. A Comissão da Verdade por lá nunca cumpriu seus objetivos e metade de seus membros terminou por renunciar descontentes com os rumos do "abafa". 

Docilizado, o legado de Mandela passou a servir para perpetuar o poder do CNA (um tipo de PRI versão sul-africana), marcado por sucessivas violências, restrições a imprensa e corrupção que beneficia uma pequena elite negra. Serviu para que os brancos da África do Sul ganhassem ainda mais dinheiro. Não se fez reforma agrária, e os oligopólios mineradores e do agronegócio prosperaram como nunca antes. 

Mandela foi essencial para a reinserção sul-africana na política e economia mundiais, trazendo capitais externos. E a África do Sul pós Mandela aumentou a desigualdade (veja gráfico) e a violência. 

Na África do Sul de hoje, de cada 10 presidiários, apenas um é branco; há a 2ª maior taxa de estupros do mundo, sendo que 8 em cada 10 vítimas são negras; e a 3ª maior taxa de assassinatos.  A Polícia sul-africana é a 2ª que mais mata no mundo (perde para a nossa:-(.[1]

No resto do mundo, a versão "Madiba" ajudou os outrora apoiadores do regime branco a virarem heróis da liberdade. Por 30 anos, EUA e Europa fizeram vistas e dinheiro grosso na AS. Também usaram o repressor e bem equipado exército sul-africano para apoiar as guerrilhas antimarxistas em Angola e Moçambique assim como atiçar clandestinamente outros conflitos, como Namíbia, Congo e no antigo Zaire.

No Brasil, a imagem do bom velhinho vem contribuir para deixar intactos nossos preconceitos e, permite-nos seguir com o extermínio de jovens negros e todas as outras formas disfarçadas de violência preconceituosa cotidiana contra os negros, até hoje considerados como mercadoria.

Morto, Mandela, que foi o maior herói político de uma era, seguirá a travar uma luta, desta vez contra a jaula da memória coletiva formatada pelos poderosos, que transforma tudo em show, produto e efêmeros trendtopics.




[1] Fonte: Crime and Violence Global Stats;  www.unodc.org

quarta-feira, 17 de julho de 2013

QUAL É O CUSTO DA CORRUPÇÃO?



Noutro dia, em uma conversa sobre os protestos contra “tudo o que está aí”, perguntaram-me qual é custo da corrupção. Meus interlocutores esperavam uma resposta econométrica, destas que lhes provesse dados numéricos para corroborar o que eles sabem com certeza: de que são vítimas justas e indefesas de um Estado corrupto ao qual sustentam com seu trabalho.

Comecei minha resposta pela velha e necessária definição de termos. Considero corrupção como todo desvio de finalidade de um recurso e/ou direito. Logo, há corrupções. E acontecem em distintas esferas (Estado, Empresas, Igrejas, Associações) e formas (diretas, quando os recursos são usados ilegalmente; ou indiretas, quando são aplicados contrariamente aos princípios de seu uso).

As corrupções diretas (superfaturamentos, concorrências viciadas, etc.) são evidentes e as únicas passíveis de punição. Nas indiretas, mais sutis e impuníveis, o recurso é usado para beneficiar poucos e/ou ineficiente-displicentemente. Cabem aqui as organizações religiosas e civis que alavancam agendas de poder ou negócio; as empresas que geram demandas de bens desnecessários e/ou influenciam leis por lucro; as políticas/práticas públicas preferenciais para não pobres, tais como incentivos fiscais excludentes, aparato policial priorizado em proteger a classe média; a Justiça que garante direitos só aos com recursos para reclamá-los; as normas que priorizam o controle à vida; negar acesso a uma tecnologia que salva vidas aos que não podem pagar; o orçamento destinado à guerra e não à paz ou à infraestrutura e não às pessoas. E muitos mais eticéteras.

Há também corrupções individuais, de todos os tipos. A sonegação de impostos, ativa ou através de compras ilegais ou descontos indevidos, é roubo. Estacionar em uma área indevida é desviar a finalidade do uso de um espaço. Conduzir depois de beber ou acima da velocidade corrompe um direito. Priorizar interesses adultos aos das crianças rouba a prioridade delas ao desenvolvimento. Poderia estender a lista com as corrupções no uso de recursos naturais.

As estimativas sobre custos das corrupções são imprecisas porque cada uma delas desencadeia prejuízos sociais e/ou impede ganhos. Mas, é possível deduzir o custo mínimo, através de um caminho metodológico, semelhante ao usado em Astrofísica para encontrar corpos celestes, pelas distorções. Se assumirmos o pressuposto de que os recursos e capacidade da sociedade são suficientes para garantir os Direitos (alimentação, moradia, saúde, educação, paz social, participação, etc.), toda não realização destes (exceto as decorrentes de opção individual) pode ser considerada nos custos das corrupções. 

Mais importante do que cifras e rankings subjetivos, as corrupções têm enormes custos humanos. Números? Cito um: mais de 165.000 mortes anuais evitáveis de crianças e adolescentes, no Brasil, só para contar as geradas por falta de saneamento, atendimento em saúde, violências e poluição atmosférica (agravadas pelo modelo de transporte individual movido a incentivo fiscal).   

Para reduzir os custos das corrupções é necessária uma intolerância moral que rejeite maniqueísmos, exerça crítica/autocrítica traduzida em participação para a transparência e reoriente as ações.

Em resumo, decepcionei meus interlocutores.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

“EU TE DISSE”: CONSELHOS, CONFERÊNCIAS PARTICIPAÇAO POPULAR NO BRASIL




Há quase 20 anos anos, quando eu tentava virar cientista político, escrevi e defendi a primeira tese acadêmica, no Brasil, enfocada na análise (no nível nacional) sobre Conselhos da Criança e do Adolescente (CDA’s). Quando da pesquisa, o ECA e as portarias regulamentares dos CDA’s tinham pouco mais de 2 anos e a universidade ainda oscilava entre os polos de tecer loas à “emergência popular” e o que criticava a “despolitização da política”.

Na época, analisei a composição do Conselho Nacional, de todos os conselhos estaduais (alguns ainda em processo de formação) e dos conselhos das 20 maiores cidades brasileiras. Minha conclusão foi de que a primeira geração dos Conselhos representava a institucionalização dos mecanismos de participação. Em resumo, os CDA’s não aumentaram a participação popular, eles foram consequência desta. Eles proveram um mecanismo de influência e de decisão em políticas públicas de atores sociais consolidados. Os participantes dos CDAs não eram grupos excluídos. Eram os grupos já influentes (e geralmente os mesmos) que agora ganhavam a força da lei para exercer seu poder. Gramsci na veia! :->

Na mesma tese, apontava que embora os conselhos existam no Brasil desde a década de 30, e os fóruns já eram uma realidade desde meados dos anos 80, os CDA’s eram um protótipo (bem-sucedido pelos critérios políticos) de um novo tipo de mecanismo de participação, mais efetivo, institucionalizado e amplo. E, que as circunstâncias políticas proviam o ethos para o formato “conselhista” (conselhos paritários, fóruns e conferências) ampliar para todos os setores das políticas públicas.  Isto não era uma previsão, clarividência é com os Economistas e pais-de-santo kkk. Apenas segui a consequência da minha hipótese: Se havia crescente participação popular enfocada em setores (e não em teses partidárias ou ideologias, como no pré-64), o formato “conselhista” colhia sucessos políticos e as circunstâncias e sistemas políticos brasileiros propiciavam a oportunidade, os conselhos iriam proliferar. Em resumo, como havia participação popular (a despeito do discurso comum, maiormente da esquerda tradicional, de crescente alienação da vida pública) ela iria se materializar em conselhos. Apontei que as forças políticas tradicionais (partidos) que apostassem na emergência dos conselhos (e investissem energia em influenciá-los e, mesmo, instrumentalizá-los) ganhariam força. Os que os desprezassem, perderiam capacidade de influência.

Também apontei que o processo de escalonamento "conselhista" trazia suas próprias contradições (que trabalhei, na análise teórica, na tese de doutorado, 3 anos depois) e perversões, quer iriam gerar ajustes internos de sobrevivência, cristalizações conservadores e, por fim, reações (outros movimentos e mecanismos) que, um dia, iriam lhe superar. Em resumo, Habermas me guiou para entender o surgimento, Weber a consolidação, Marx a superação (ninguém jamais entendeu da finitude humana como o crente Marx kkk) e Lula a instrumentalização kkk.

O tempo passou, desloquei-me para a Economia e pensei que minha tese estava destinada às grises estantes da FFLCH-USP. Eu mesmo nunca mais reli minha própria tese. Tem coisa mais chata do que tese acadêmica? Só assistir a Golfe pela TV :-> Daí, pensei que ninguém mais fosse lê-la, mas me surpreendi quando a vi citada amplamente em dois recentes estudos (UFMG e IPUPERJ) e em uma Pesquisa (IPEA) sobre os conselhos no Brasil. Não é que meu X-Tudo analítico de 1994, segue provocando análises? E todas parecem validar a hipótese. Sinistro, diria meu filho. Nem eu concordava muito comigo há 20 anos.

A revisão do IPEA sobre os dados governamentais constata que mais de 5 milhões de pessoas ajudaram a formular, implementar ou fiscalizar as políticas públicas no Brasil. Foram realizadas nos últimos anos, 73 conferências nacionais temáticas para debater e propor políticas públicas. Dos 114 conferências realizadas no Brasil nos últimos 60 anos, mais de 70%  aconteceram nos últimos 10 anos. Isto revela um evidente escalonamento deste mecanismo. 

5 milhões é pouco mais de 2% da população. Pouco? Que nada. Em um cálculo estimativo rápido (usando a média de membros de cada grupo X a média de participantes por grupo), estes 5 milhões de participantes representam quase 30.000.000 de pessoas, ou mais de 15% da população. Se usarmos os índices de participação estimados pelo Observatório Europeu de Democracia o equivale a 3 vezes mais a média de participação das democracias consolidadas (com mais de 15 milhões de habitantes).  Um exemplo, na França todos os mecanismos de participação popular canalizam menos de 8% da população. Isto é superado apenas em países de população menor, como na Suécia, a campeã mundial neste indicador, com 23%.

Mais da metade dos conselhos nacionais de políticas públicas que contam com participação popular foram criados ou ampliados nos últimos anos. Durante esse período, programas estruturantes como as medidas conjunturais foram decididos e implementados por meio destes mecanismos de diálogo. Foram criados ou ampliados diversos canais de interlocução do Estado com a sociedade - conferências, conselhos, ouvidorias, mesas de diálogo etc. A autora da análise, Simone Mateos, arrisca a dizer “que já configuram o embrião de um verdadeiro sistema nacional de democracia participativa.”


Nas 73 conferências nacionais foram discutidos temas como: Políticas de Assistência, Desenvolvimento Econômico, reforma agrária, reforma urbana, comunicações, segurança pública, inclusão social, saúde, educação, meio ambiente, segurança pública, igualdade racial, dos direitos das mulheres, minorias de todas as configurações.



Variam os temas, mas o formato é sempre o “conselhista”. Em uma estrutura congressual (algumas conferências começam com debates por bairro ou unidade, escola, posto de saúde, etc.). Todas têm etapas municipais que discutem teses de um documento base e elegem representantes para o encontro regional e/ou estadual, de onde saem os delegados nacionais. Delegados de órgãos públicos (algumas vezes ministros e mesmo o presidente) participam de seus grupos de trabalho e das plenárias das conferências nacionais. Observadores do Ministério Público, do Judiciário e do Legislativo também se fazem presentes.

Em vários dos temas foram criados ou ampliados os Conselhos Nacionais (que geralmente estão estabelecidos nos 3 níveis federativos e/ou ainda em regiões específicas: bacias hidrográficas, polos industriais, etc.). As diretrizes aprovadas nas conferências nortearam políticas públicas elaboradas, fiscalizadas e avaliadas pelos 61 conselhos de participação social. 33 foram criados ou recriados (18), ou ampliados (15) desde 2003. Em 2010, 45% de seus membros eram do governo e 55% da sociedade civil.

As formas de escolha e ocupação dos assentos variam muito. Mas, em 91% dos casos, reflete outras estruturas organizadas (sindicatos, conselhos de classe, associações de moradores, usuários, etc.). Noutras palavras, estes mecanismos refletem um movimento participativo muito mais amplo do que eles mesmos. E já existente. Para usar um chavão: eles são a ponta do iceberg.

A análise tradicional chora as pitangas saudosas por tempos quando a política era mais vivida pela sociedade. Os dados nos mostram que a participação popular existe e é altamente significativa embora não se enfoque em projetos de sociedade e sim em temas de interesse específico. Não gosta? Você preferiria todos engajados em uma discussão sobre os modelos econômicos ou a angústia do homem moderno frente ao dilema ontológico da efemeridade? Talvez em outro planeta. Hoje,  uma característica da política nas democracias contemporâneas é o foco em temas.

E as conferências e conselhos não ficam na discussão. É o que comprovam os 2 estudos citados. Muitas das suas deliberações já se tornaram decretos, portarias ou projetos de lei aprovados ou em tramitação no Congresso. Isto sem contar em leis estaduais e municipais.
Um dos estudos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenado pelo grande Professor Leonardo Avritzer, analisou o acesso a serviços públicos de saúde e educação em cidades com mais de 100 mil habitantes e constatou que aquelas com maior participação popular apresentaram proporcionalmente 3 ou 4 vezes mais matrículas em creches e no ensino fundamental, além de 10% mais consultas de leitos do SUS. Seu desempenho administrativo também era melhor: com uma receita corrente 70% superior às dos municípios com baixos níveis participativos, os mais participativos tinham uma receita tributária 112% maior.

Já o estudo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), conduzida pela a brilhante e gatíssima ex-aluna Thamy Pogrebinschi,  procurou medir o impacto da participação popular na atividade legislativa. Ela constatou que 21% dos projetos de lei e quase 50% das propostas de emenda constitucional têm evidências de influência das deliberações de alguma conferência. Nos período de 2004-2008, ¾ das leis e 90% das emendas constitucionais que foram aprovadas no Congresso traziam convergências com diretrizes das conferências. Mesmo que tenha gente que continua papagaiando que o Congresso não repercute em nada a sociedade. Resultados preliminares de uma 2ª etapa do estudo mostram que projetos de lei com este foco correspondiam a 18% do total que tramitava no Congresso no final de 2009.

Tudo isto não quer dizer que o povo chegou ao poder. Nem que o Congresso tenha menos poder por conta dos conselhos. Nem tão pouco que estes mecanismos não estejam sujeitos à manipulação. Em uma sociedade aberta ao conflito e ao dialogo, tudo está. Nem significa que o governo realmente termine por implementar o que escuta dos conselhos. Nada ocorre fora da realidade de poder e tudo é por ela permeada. Os próprios conselhos comumente apontam que suas opiniões são pouco respeitadas quando finalmente da implementação das políticas. Reclamam da falta de mecanismos impositivos, de sistemas de monitoramento transparentes, etc. Internamente, há a crítica de que as conferências têm estrutura concentracionista. Assim, poucos grupos (mais poderosos política e economicamente) podem controlar grandes conferências.

Os Conselhos aumentam a permeabilidade a influência dos mecanismos do Executivo, mas ainda pouco podem fazer para melhorar a escuta do poder Judiciário e tornar mais acessível o poder que deveria escutar por natureza, o Legislativo. Os conselhos também são mecanismos tradicionais de participação, encaixam-se com a politica institucional, não dão conta das dinâmicas de participação desinstitucionalizada que emergem das redes espontâneas atuais. 

Os conselhos também não superam a timidez dos canais complementares de participação, previstos na Constituição de 88. Na Suíça, 30.000 assinaturas convocam um plebiscito sobre qualquer tema não constitucional; nos EUA, na maioria dos estados, 1% dos eleitores podem convocar plebiscitos; 11 países da União Europeia têm mecanismos para projetos por iniciativas populares muito mais simples do que os brasileiros, etc.

Mas, quais as alternativas? O conflito violento? Deixar a influência só para os lobbys que atuam no Congresso (estes sim, muito mais excludentes e elitistas e muito menos transparentes)? Uma “classe média” desorganizada (com notável exceção da elite representada por sindicatos da elite do funcionalismo público e dos grupos empresariais), tem sua influência exercida pelo poder aquisitivo e pelos privilégios de posição. Noutras palavras, não é uma maneira mediada de disputa de poder. É uma imposição de força, seja econômica, seja de escolarização, seja de cor da pele, etc. 

Nenhum dos problemas e vícios do sistema invalida o fato de que hoje os conselhos são o principal mecanismo de participação política direta no Brasil. Ainda que sejam insuficientes e falhos. Au contrarie, esta constatação traz para um nível essencial da agenda política a necessidade de aprimorar estes mecanismos, minorar seus vícios e torná-los mais transparentes. Também é interessante analisar o quanto os demais mecanismos de participação (aqui incluo desde os institucionais tradicionais como partidos até os “espontâneos” como os grupos de alta mobilização e baixa organização) têm sido influenciados ativa ou reativamente pela ascensão do “conselhismo”.

Mesmo com todas as falhas e contradições, é difícil achar um analista que não concorde que as políticas sociais e setoriais que existem e seus respectivos orçamentos não sejam também (e, em alguns casos, principalmente) influenciados pela participação popular. Os sistemas de saúde (SUS) e assistência (SUAS) teriam outra configuração e prática (piores, na minha e na opinião da maioria dos especialistas) se não fossem os conselhos.

Antes de sair por aí saudosamente lembrando-se do tempo em que se discutia política nos bares ou repetindo “achismos” como “na Europa o povo é muito mais politizado” é importante lembrar que a participação política complementar institucional (com todas as suas contradições) está mais viva do que nunca.


Diante da realidade de 2011, poderia baseado na minha tese de 1994, repetir o bordão daquela moto de desenho animado: "Eu te disse" :-)

domingo, 1 de maio de 2011

DADOS X OTIMISMO


Eu sou otimista, os dados não, dizia meu pai. Eu sou um otimista com o avanço dito inevitável da liberdade, a intitualda "revolução democrática” do Oriente Médio, de 2011.

A mídia tentou ajudar meu otimismo. Levantes foram retratados com enredos cinematográficos. Criaram-se propósitos, lógicas. Principalmente, mocinhos e bandidos. Onde existe uma realidade política-social complexa, vendeu-se a idéia de jovens internéticos lutando contra tanques. Parafraseando Vandré, “da força do twitter, vencendo canhões”.

Há quem compre isto. Eu gostaria de comprar. Mas, os dados conspiram contra meu otimismo.

Na Tunísia, o mesmo grupo apoiador da ditadura segue no poder e manobra para que nas eleições só seus apoiadores sejam candidatos viáveis. Conseguirá.

No Egito, o exército, que esteve no poder junto com Mubarak (e com Sadat, seu antecessor), segue intocavelmente forte e já garantiu junto aos potenciais candidatos de “oposição” (praticamente, todos ex-colaboradores íntimos do regime destituído) não só a garantia de seu espaço, mas até a ampliação. Exemplo, os tribunais independentes para militares, que Mubarak havia aceitado para aplacar a oposição das ruas, já foram revogados.

Na Líbia, EUA+UE (mesmos que fizeram as guerras do Iraque e Afeganistão) armam radicais e bandos desorganizados (o Talibã afegão é fruto da política "inimigo de inimigo meu, é meu amigo") para garantir o fluxo de petróleo. Bombardeiam alvos civis. Elegeram para o papel de vilão do momento, o mesmo ditador com o qual conviveram e eram sócios até 3 meses atrás (já vi este filme com outro ator, Sadam). O massacre da população civil líbia, a guerra civil e o crescimento de grupos radicais islâmicos são os únicos resultados concretos até agora. Diante da realidade tribal líbia, da profunda divisão do país e da inexistência de sociedade civil (ou partidos) esses serão os únicos resultados a se esperar, no futuro próximo.

Síria e Bahrein estão reprimindo com eficiência a oposição e o medo de mudanças radicais fará retroceder em uma ou mais décadas a lenta abertura que se operava nestes países.

Além das mortes, os movimentos no Norte da África provocaram outra mudança concreta. As políticas imigratórias européias. França e Espanha recusam os barcos e trens de refugiados dos conflitos. Ameaçam rever os acordos de livre circulação dentro da UE. Seus representantes, com gravatas italianas, farão longos debates em Francês, citarão filósofos alemães. Ao final, usarão o conflito africano como desculpa para retroceder, ainda mais, suas políticas migratórias.

O que é vendido como avanço democrático, fora a troca de meia dúzia de corruptos, redundou em sangue e retrocesso. Sigo otimista, os dados é que teimam em contradizer meu otimismo.

terça-feira, 26 de abril de 2011

A MÉDIA SOU EU

Sociologia é como um vício. Não existe cura, há abstinência. Nosso ex-presidente e eterno “príncipe-pavão-eu-sou-demais-e-fiz-sorbonne” provocou a polêmica que queria ao escrever para seu partido esquecer povão e se concentrar na classe média. Foi uma recaída do sociólogo em abstinência para que o político sobreviva. Na verdade, FHC só fez ler o já clássico artigo do meu brilhante colega André Singer (neste blog...), que mostra a emergência de uma nova classe média que dá sustentação ao PT.

Mais do que uma conversa de uspianos, o artigo toca em um ponto interessante. Na cultura brasileira falar ou do povão ou dos ricos é místico, porque todo mundo aqui se acha classe média. Inspirado no artigo, José Roberto de Toledo escreveu um interessante artigo no Estadão. José Roberto mostra que ler a leitura que fazemos dos dados não é tarefa de especialistas, é olhar o próprio espelho. Alias, o Rei está Nu e tem barriga ;-). Abaixo o artigo:




“O rico não sabe que é rico. Um em cada cinco pobres não se acha pobre. Ambos sofrem da síndrome de classe média.
Apenas 1% dos que estão no topo da pirâmide social brasileira se reconhece abastado. Praticamente dois terços desses que estão na mais alta faixa de renda dizem que são classe média. O resto não aceita tal régua e se diz "trabalhador".
A camada intermediária incha em toda pesquisa que pede para o entrevistado dizer qual sua classe. Não é preciso ir à Sorbonne para entender o porquê. Como não dá para calcular sua posição na escala social sem se comparar aos outros, seu lugar será sempre relativo. O mesmo 1,80 metro que garante a posição de pivô no time de basquete dos pigmeus, é insuficiente para ser armador na NBA.

Numa autoclassificação por renda, a maioria dos indivíduos olha para um lado e vê que há gente mais rica do que ele; olha para o outro e nota que há também mais pobres. Logo, seu lugar deve estar no meio.
Em pesquisa CNI/Ibope de 2008, 42% dos brasileiros se autoclassificam como classe média ("alta", "baixa" ou sem adjetivos) e 19% como classe trabalhadora/operária.
Ideologias à parte, os ditos trabalhadores/operários estão mais perto do extrato superior do que do terço que se considera na classe baixa/pobre. Comparando sua renda com a dos outros, pelo menos metade deles seria classe média.
Desde que a pesquisa foi feita, há quase três anos, mais pessoas emergiram economicamente. Mantido o crescimento do consumo, a classe média será ainda mais majoritária em 2014.
Como resultado, se um candidato for à TV e pedir o voto de quem é da classe média, ele terá boas chances de sair com mais eleitores do que inimigos. Há um inconveniente, porém: não será o único político fazendo esse apelo eleitoral.
PT e PSDB vêm buscando o voto da classe média há várias eleições. Descobriram que há diferentes classes nessa média: os emergentes, os decadentes e os estáveis; subdivididos em estudantes, estudados e sem estudo; em crentes, agnósticos e não praticantes; além de ricos, pobres e remediados.
Acertar o discurso para cada segmento é um problema, porque muitas vezes os interesses são contraditórios. Os ricos reclamam dos impostos altos, por exemplo, enquanto os pobres acham que eles são necessários para garantir saúde e educação. É natural: estes usam muito os serviços públicos, aqueles, pouco.
Os ricos têm dificuldades de se saberem ricos porque a dispersão da renda é maior na ponta mais afluente da escala. Proporcionalmente, a desigualdade é mais aguda entre os ricos do que entre os pobres.
Segundo a PNAD 2009, o rendimento do 1% mais rico é o triplo do que ganham os 4% do degrau imediatamente anterior. Ou seja: a não ser que seu nome seja Eike Batista, sempre haverá alguém ganhando muito mais do que você e será fácil de notar pelo modelo do carro, pelo tamanho da casa ou pela autonomia do jatinho.
Na frase entreouvida em um grupo de pesquisa qualitativa sobre a nova classe média: "Rico é quem tem lancha". Com barcos financiados em 48 prestações no cartão de crédito, já há quem diga que rico é quem tem vaga em marina.
Entre os ex-pobres, os signos da diferença social são mais prosaicos: um celular inteligente, uma conexão rápida à internet no computador de casa.
Como nota o pesquisador Maurício Moura, muitas novidades consumidas pelos emergentes implicam mais acesso à informação, o que os torna permeáveis, ou pelo menos acessíveis, ao discurso da oposição. Daí talvez Fernando Henrique Cardoso descartar "as massas carentes e pouco informadas".
Mas não basta ter acesso ao alvo. O discurso precisa acertar. Em propaganda recente, o PSDB reclama das filas nos aeroportos. São filas que incomodam o eleitor tradicional do partido, mas que foram formadas pelo afluxo de novos passageiros, os mesmos emergentes que os tucanos querem conquistar.
O PSDB tem mais um motivo para apurar o discurso. Dilma Rousseff está com aprovação superior ao seu porcentual de votos no 2.º turno de 2010. Logo, uma parcela dos eleitores de José Serra em 2010 aprova o governo da petista. Seriam eles de classe média? Podem não ser, mas acham que são.”

(José Roberto de Toledo)

quarta-feira, 20 de abril de 2011

COBERTOR DE POBRE



Faz duas semanas, a presidente disse, em Belo Horizonte, que será difícil erradicar totalmente a pobreza do País ainda no seu mandato. O mesmo objetivo que apresentara na campanha e repetido nos discursos inaugurais do mandato. O grande Marcelo Neri, do CPS-FGV, já havia dito que "a erradicação é inatingível". Nery e outros defendem uma meta mais concreta, um compromisso: reduzir à metade o contingente atual de pobres.

Uma parte do trabalho de redução da pobreza foi feito (mesmo que nada seja irreversível). Desde 1994 (para que meus alunos tucanos e petistas não me acusem de nada:-), a queda já fora de 67%. Somente nos 8 anos do guru Lula, a queda foi de 50,6%. Isto é, 13 milhões a menos de pobres.

Mas, o Brasil é um país de grandes números. E, mesmo se até 2014, conseguirmos "apenas"a meta proposta por Nery (reduzir a pobreza à metade, ie, de 15,3% para 8,6%), ainda teríamos 16,1 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza (R$ 142 mensais). 8,6% “é baixo”, é muita gente. Significaria dizer, por exemplo, que em 2014, ainda haveria cerca de 6 milhões de crianças (usando a proporção de menores de 18 anos nesta faixa de renda) vivendo com menos do mínimo em comida, educação e abrigo.

O custo para erradicar totalmente a miséria, somente via transferência de renda, ficaria em adicionais R$ 22 bilhões anuais. O custo do Bolsa-Família está menos de R$ 15 bilhões/ano, cerca de dez vezes menos que a despesa com juros, só no plano federal.

Mesmo que a presidente reconheça que sua meta é difícil, mandou seu governo caminhar para alcançá-la. Como primeiro passo, estabeleceu-se que ao mesmo  nas 500.000 famílias cadastrados do BF a miséria será erradicada. Para isto, o governo fez um cronograma de aumentos no benefício. E concedeu, agora em 2011, 19,6% de aumento aos 12,9 milhões de famílias beneficiárias no programa (que reúnem cerca de 40 milhões de pessoas). Mas, como a Matemática é cruel, este "pequeno passo" já teve seu preço. O governo federal fará cortes de R$ 340 milhões em vários outros programas sociais, alguns cortes sociais:
  •  O ProJovem, que só atende 3,5 milhões dos 55 milhões de jovens possíveis beneficiários, perderá R$ 34,3 milhões;
  • O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) só terá R$ 250 milhões;
  • R$ 6,21 milhões foram cortados do programa de combate ao abuso e à exploração sexual de crianças;
  • O sistema que protege o adolescente em conflito com a lei perde R$ 2,5 milhões;
  • O Fundo Nacional de Assistência Social terá um corte de 10% nos gastos opcionais;
  • R$ 1,5 bilhão a menos no orçamento do Ministério da Justiça para o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania e para combate a drogas.
  • R$ 1.8 Bilhão a menos para o Minha Casa, Minha Vida.

Se usarmos todo recurso disponível em transferência de renda, podemos prejudicar políticas estruturantes e inclusivas. E ainda, reduzir o déficit saneamento (essencial para garantir saúde e bom uso da água). Washington Novaes (em artigo do dia 8/4), lembrou que o IBGE aponta para 56% dos domicílios brasileiros, com mais de 100 milhões de pessoas, que não são ligados a redes de coleta de esgotos (e só 29% dos esgotos coletados recebem algum tratamento); quase 10% dos domicílios não recebem água tratada. Já o Atlas Brasil (Agência Nacional de Águas - ANA), expõe que perto de 55% dos municípios brasileiros enfrentarão problemas de escassez de água até 2025. A ANA afirma que o Brasil precisa investir R$ 22,2 bilhões para evitar o risco de colapsos. Já o investimento total em água e esgotos é calculado em R$ 70 bilhões. So' a perda com desperdicio de agua e' R$ 7,4 bilhões anuais”.

A pobreza muda e com ela precisam mudar as políticas. O país precisa ampliar os mecanismos para que mais pessoas possam acessar suas riquezas (“habitabilidade”, educação de qualidade, acesso a crédito produtivo, redução de impostos sobre consumo básico e salários, etc).

A presidente tem uma tarefa mais difícil do que reduzir a pobreza. Enfrentar uma construção de desigualdade estruturante que consolida privilégios. Este sistema está refletidos em tudo: Impostos focados em consumo e que beneficiam rentistas; Isenções focadas na elite (por exemplo: se “você” gastar 500.000 para fazer uma cirurgia plástica em Miami, pode deduzir isto de seu imposto, isto é, transferir a conta à sociedade; se ajuda a creche da sua comunidade ou se compra um livro para seu filho ler, aí é problema seu); Subsídios para setores produtivos controlados por poucos (Açúcar&Álcool, Mineração, Telecomunicações, Energia, etc.), Aposentadorias especiais; Benefícios Sociais não focados em pobres; etc.

A desigualdade e a pobreza não são fenômenos econômicos, são consolidações sociais. O Estado se aperfeiçou em beneficiar a poucos e perpetuar as desigualdades. Ou a presidente consegue destravar pelo menos alguns destes mecanismos ou terá que tirar de um pobre para dar ao outro. Em outras palavras, nao basta descobrir um santo para vestir outro. E' necessario deixar o diabo pelado :-)

sexta-feira, 1 de abril de 2011

DESENVOLVIMENTO E POLÍTICA: COSTA DO MARFIM


Curiosa a memória e seus filtros. Faz 20 anos, muitos fatos talvez mais relevantes se foram, mas nao me esqueço do último dia de uma visita impressionante. O Sol refletido no turquesa da baia da Abdijan dizia, sem pedir licença, um enfático “bom dia” para os hóspedes do hotel. A cortina não era párea para uma luminosidade  que contradizia o relógio, onde ainda aparecia 05h50min. Abdijan dispensa despertadores.

Avenidas largas sonhos de governos megalomaníacos e suas majostosas palmeiras, combinavam com ruas desorganziadas de um passado colonial recente. Transplante europeu deslocado. A herança do colonizador, colonizada. Gente colorida e suas conversas sempre empolgadas. Sorrisos e protestos evidentes. Tudo muito evidente como convém neste lado do mundo. Os tambores sincronizam o coração. A piada e o sorriso sempre presentes, mesmo ou principalmente, na tragédia. O oceano não separa os fortes traços de culturas africanas que nos vieram de toda aquela região. Traços que são, assumidamente ou não, o centro do que chamamos de cultura brasileira. Para um brasileiro, a Abdijan  de 1991 era como a casa de um familiar.

Foram dias de intensas boas surpresas em cidades e vilas alcançadas por estradas muito mais bem cuidadas que as de grande parte do interior brasileiro. Pequeno, então pacífico e com uma distribuição fundiária quase em padrões europeus, a Costa do Marfim desafiara meu pessimismo em relação ao futuro da África. O país vivia um período de democratização, depois de mais de uma década de relataiva prosperidade, mas de um único presidente. Se as Democracias talvez se pareçam, as ditaduras são sempre singulares. Esta tinha um parlamento e um primeiro-ministro eleitos, mas um só partido. Substituía as habituais brutais forças de Inteligência por uma rede de escolas públicas, presentes em toda comunidade. As escolas eram os pontos tanto de controle como de distribuição de benesses sociais. Na liderança um líder carismático, libertador e herói nacional, com preocupações sociais contraditórias. Era o que hoje acostumamos chamar de populista. O presidente, outrora auto-proclamado, agora tinha a legitimidade das urnas, nas primeiras eleições pluripartidárias e fiscalizadas.

As escolas surgidas para controlar haviam se transformado em núcleos comunitários. Cada comunidade, por menor que fosse, tinha sua organização. Jovens, oriundos da primeira geração alfabetizada, chefiavam conselhos comunitários. Era estimulada a crítica a tudo e todos, menos ao presidente. Esta mistura de estabilidade de um regime de partido único, em um país que já multipartidário, a liberdade empreendedora, um povo aberto a estrangeiros e um Estado que não insistia em regular os detalhes da vida, atraiu investimentos de toda a parte. Também foi o contexto que fez da Costa do Marfim um ponto de encontro e diálogo diplomático para países vizinhos então (e a maioria até hoje) em crise.

Esse ambiente de relativa paz, taxas de escolarização superiores à média africana e a boa infra-estrutura possibilitavam uma exploração mininamente racional das riquezas minerais (presente abundamente em quase toda a região, uma das províncias minerais mais ricas do mundo). Naquele ano, o país completava 20 anos de melhoria ininterrupta no seu Índice de Desenvolvimento Humano. A continuar a tendência, em mmenos de 2 décadas, seria um país de desenvolvimento médio e o 3º IDH da África. Esta foi a afirmação que ouvi atento e cédulo de um painel de economistas, chamados pelo Banco Mundial e pelo Banco Africano de Desenvolvimento. Pensava presenciar um país que abandonava a pobreza.

As Organizações humanitárias também eram otimistas. Reduziram ou fecharam seus programas de assistência no país. Abdijan, por sua paz e infra-estrutura, era então a sede administrativa sub-regional de muitos organismos do sistema internacional.

Mas, política não segue tendência estatística. E não há conquista que não possa ser perdida. Desde a década de 90 a Costa do Marfim alternou crises políticas com períodos de normalidade, cada vez mais raros. Conflitos institucionais evoluíram para guerrilhas, Golpes de Estado e guerras civis. Os investimentos se foram pouco a pouco. As agências humanitárias nunca retornaram. Restaram apenas os investidores de alto risco e baixa responsabilidade que trocam diamantes por armas ou até drogas.

Hoje a Costa do Marfim vive talvez os últimos dias da atual guerra civil. Seja qual for o desfecho, outras guerras provavelmente seguirão. A infra-estrutura do país acabou. Da rede de escolas públicas, restam ruínas. Estima-se que as taxas de analfabetismo estão entre as cinco piores do continente africano. Quase 200.000 crianças (abaixo de 16 anos) estão arregimentadas nas forças bélicas. Um levantamento do UNICEF contou quase 10000 crianças órfãs. com menos de 12 anos. somente nas ruas das 4 principais cidades do país. Dois terços das crianças marfinesas sofrem de desnutrição. Todo o ganho social das décadas de 70 e 80 se foi. Mesmo que a paz chegue ao país (e, em curto prazo, não há indícios que virá), seriam necessárias décadas e bilhões para voltar ao ponto de 1990. Até lá, toda uma geração de crianças marfinesas terá morrido ou sobrevivido em condições de fome, violência e abandono.

Costa do Marfim e tantos outros exemplos só corroboram o que se sabe e freqüentemente se tenta esquecer. Há desafios econômicos, sociais, educacionais, mas o Desenvolvimento é uma tarefa primeiramente Política (com o P mais maiúsculo que se pode ter) e sem política não pode avançar.

O Desenvolvimento é um processo sem atalhos, mas com muitos retornos.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

TRACE A LINHA


A presidente Dilma colocou a erradicação da extrema pobreza (miséria, perrengue, fundo do poço, etc...) como sua meta maior de governo. Logo, a segunda maior discussão momento no planalto é: "Quem são estes pobres"."Onde está a linha que os define"?  A primeira é sobre a esposa do vice-presidente, mas isto nao vem ao caso aqui. 

E aqui temos uma questão crucial: como demarcar essa linha de pobreza? Seria o patamar do salário mínimo? O rendimento necessário para o trabalhador cobrir despesas básicas calculado pelo Dieese (R$ 2.227)? O padrão seguido na OCDE (quem recebe menos de 60% da média do rendimento por adulto equivalente de cada país)?

O critério mais usado (dita a lei universal da preguiça: o mais fácil primeiro) é o do Banco Mundial: pobre é quem recebe até US$ 2 por dia (corrigido pelo poder de compra), e miserável é quem recebe US$ 1. Assim, no Brasil, miserável é quem ganha o suficiente para tomar uma lata de coca-cola light por dia, R$2,10 (não seria mais simples, trocar logo o indicador pela coca-light? :-). Este cálculo é per capita. Assim, se uma mulher, a chamemos de Rosa. Se Rosa tem um companheiro desempregado e 3 filhos, sua família estará abaixo da linha de miséria se ela receber menos de R$315,00/mês (10,50/dia0.

Imaginemos que Rosa consiga 240,00 (8,00/dia). Transferindo R$2,51 adicionais, máginca! Rosa não seria mais miserável. A matemática é simples (mesmo que minha filha nao concorde:). Mas a vida não. Nenhuma linha da pobreza medirá de fato todas as dimensões da pobreza. Aumento de renda não vem necessariamente acompanhado de bem-estar. E a mágica estatística de definir uma linha não muda a vida de ninguém. Ou você acha que se Rosa ganhasse R$10,51 ao dia teria uma vida muito distinta se a renda fosse R$10,49?

Como diria Plínio de Arruda Sampaio, as presidências neoliberais de FHC e Lula kkkk trouxeram a matemática para a discussão da política social. Ao invés de um conceito de Direito universal, a linha de FHC e Lula foi de enfocar benefícios em um grupo que mais precisasse. A linha de universalista estabelece parâmetros (altos geralmente) e luta para que todos sejam neles incluídos. A focalista crê que os benefícios devem ser distribuídos proporcionalmente à necessidade. Depois de ter o básico, o restante se resolveria pelo mercado. Focalistas defendem que uma precisa definição de pobreza levaria a mais eficácia. Universalistas dizem que o monto de recursos precisa aumentar junto com a eficácia. Divergência mais profunda do que entre corintianos e palmeirenses.

Uma frase define a importância prática da discussão: “É um jogo de soma zero: se você põe em um lado, tem de tirar de outro. Então, o conceito de pobreza – absoluta e relativa – vai determinar o quanto é preciso transferir o que sempre é uma questão delicada”.

A edição brasileira deste mês da Le Monde Diplomatique ressuscita a visão “tradicional da esquerda” sobre a discussão da definição da pobreza, ausente na grande mídia. A revista discute: “Onde fica a linha da pobreza”, com textos da Aldaíza Sposati, Eduardo Fagnani e Sílvio Caccia Bava.

A linha mais conhecida para definir a pobreza é aquelas que ganham US$ 2 por dia (corrigidos por poder de compra, alias um “detalhe” que Caccia Bava esquece em seu artigo). No Brasil, há 49 milhões de pessoas nessa faixa (dados da Comissão Econômica para a América Latina). No artigo de Caccia Bava, coloca-se que, para erradicar a pobreza, é preciso promover transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres. Como fazê-lo em curto prazo (a educação universal de qualidade é o instrumento com mais comprovada eficácia na geração de igualdade, mas demora muito tempo para gerar impacto).

Fagnani, professor do Instituto de Economia da UNICAMP (aviso: não foi meu aluno:->), afirma “que o mais grave é a implicação de que políticas universais – que beneficiam os “não pobres” – devem ser destruídas e seus recursos realocados para os pobres. “O real objetivo dessa agenda é o ajuste fiscal”. Faganini acerta na descrição histórica e no pressuposto de que o tema é atualmente, antes de social, fiscal. Mas, comete erros de leitura básica de dados, do método de cálculo de custo de vida e da pobreza.

Aldaíza dá uma aula-show em seu artigo, onde propõe una superação da briga focalismo-universalismo. Para ela a chave é estender os benefícios atuais (focais) para a categoria de direitos (universal) a ponto dos pobres poder “contar com” e “ter certeza” do acesso. Aldaíza lembra que erradicação da miséria, mesmo que conte com a ajuda dos programas de transferência de renda, fundamenta-se no acesso a serviços públicos igualitários. Acerta na receita, só não diz como pagar a conta do remédio.

Como diria nosso guru “Nunca antes na história deste país” uma linha imaginária foi tão importante.

 
Para acessar a Le Monde Diplomatique
 

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Em Primeiro Lugar nas Pesquisas Acadêmicas

Um levantamento na CAPES informa que tivemos 209 trabalhos de pós-graduação (mestrado, doutorado e livre-docência) sobre o Governo Lula. Outra mirada revela que teremos, até o final de 2012 outros quase 600.
Definitivamente Lula liderará as pesquisas acdadêmicas nos próximos 10 anos, ou mais.
Nunca na história deste país, desde Getúlio, um presidente foi tão estudado :-)
Abaixo, na série "Sem dados e com Política", o psicanalista e professor da UNIFESP Tales Ab'Saber faz sua leitura freudiana do nosso guru. Inteligente arrazoado, com o mérito de ir além de uma leitura economicista, é uma leitura proveitosa.
Mas, Sáber escorrega em alguns preconceitos e em um discurso de tom inflado demais para um analista. Parece irritado, Freud Explica :-)


O corpo de Lula e o pacto social

Além de brindar os ‘mais pobres’ no projeto político, presidente tratou de cooptar os ‘muito ricos’

Tales A. M. Ab'Sáber

 
Lula deu início a seu governo declarando de modo desafiador e irônico que surpreenderia fundamentalmente tanto a direita quanto a esquerda. Afora o que há de autocomplacência lépida e demagogia comum na frase, de resto dimensões narcísicas do discurso que o político e seu governo jamais aboliram, há nela, em seu fundo, uma verdade política explícita forte, que acabou por se confirmar historicamente.

O principal da frase não é seu tom paradoxal e triunfante, a célebre tendência falastrona do presidente, da qual ele próprio é autoconsciente, mas a clara referência a fazer uma política que intervenha nos dois polos opostos da vida nacional, o claro desejo de articular os extremos em seu governo, e desde já podemos dizer, em seu corpo, de modo a que as posições políticas limites acabassem por suspender, rever e inverter seus próprios critérios, uma a favor da outra. E de fato este projeto foi desenvolvido, consciente ou inconscientemente, de modo determinado e por golpes do acaso, ao longo de seus dois governos.

Esse foi o paradoxo social e político do governo Lula. Ele foi expresso em duas dimensões: uma, junto à massa de pobres que aderiu pessoalmente ao presidente, como lulismo; outra, como pragmatismo e grande liberdade liberal, tanto para a economia quanto para os velhos e bons negócios da fisiologia e do amplo patrimonialismo brasileiro mais tradicional. O fato de um novo grupo, o do partido do presidente e dos sindicalistas ligados a ele, adentrar o velho condomínio do poder não representava problema suficiente para as velhas estruturas de controle político nacional, ainda mais se isso significasse, como acabou por se confirmar, o fim da tensão classista e contestatória própria à tradição histórica petista.

O fim incondicional da perspectiva de luta de classes do Partido dos Trabalhadores, e sua adesão enquanto partido no poder à tradição política imoral e particularista brasileiras, foi o primeiro e muito importante movimento político realizado pelo governo Lula, em sua busca de consenso em todo o espectro da vida social brasileira. Derrotado o próprio habitus de oposição de seu partido, que chegava ao poder através do corpo transferencial - ou seja, amoroso - de Lula, realizou-se sua primeira grande mágica política: a dissolução de qualquer oposição real ao próprio governo.

Isso por que, de fato, o segundo muito claro e ainda mais fundamental golpe, este de caráter econômico, simplesmente deixou a oposição à direita do governo durante anos sem objeto e sem discurso, para além de sua tradicional e dócil tendência de agregação a todo poder efetivo: Lula entregou inteiramente as grandes balizas macroeconômicas essenciais do país às avaliações e às tensões particulares do mercado interno e global, ao autonomisar na prática o Banco Central, realizando assim uma velha demanda neoliberal e peessedebista, além de colocar em sua direção um verdadeiro banqueiro internacional puro-sangue, Henrique Meirelles, ex-presidente do Bank Boston. Assim ele simplesmente se apropriou sub-repticiamente da árdua herança econômica tucana.

Esse golpe, como não poderia deixar de ser, atingiu profundamente as bases ideológicas e práticas da direita local. Através dele, com um gesto de cordialidade que seria retribuído, Lula simplesmente roubou a verdadeira base social tucana. Além de constelar as classes muito pobres em seu projeto político, o que já foi demonstrado por André Singer, Lula também cooptou amplamente os muito ricos, movimento sem o qual não se pode explicar o grande consenso que se criou ao redor do seu nome. Nas vésperas de sua segunda eleição, grandes banqueiros declaravam explicitamente nos jornais que para eles tanto fazia a vitória de Lula ou de seu rival conservador de então, Geraldo Alckmin. O que, de fato, creio que era uma inverdade. Eles preferiam Lula.

A grande direita econômica se realinhara ao redor de um governo neopopulista de mercado, que buscava realizar seu pacto social, que não foi escrito como o de Moncloa, mas garantido pelo corpo carismático especial de Lula. Era bom um governo a favor de tudo que pacificasse e integrasse as tensões sociais brasileiras tendo como único fiador mágico o corpo transferencial de Lula, a radicalidade de seu carisma.

O terceiro elemento muito poderoso na construção do amplo pacto social lulista foi a tão ampla quanto propagandeada política de bolsas sociais, articulada a uma imensa expansão do crédito popular, que, se não realizou a cidadania plena dos pobres de nenhum modo, lhes deu a importante ilusão de pertença social pela via de algum baixo consumo, o que, dado o estado atual de regressão das coisas humanas, é o único critério suficiente de realização e felicidade. E, também, de realização do próprio mercado e da produção local, que se aquecia, ficando feliz, bem feliz - como foi feliz a própria cultura soft e popzinha cheia de cantoras malemolentes do período. Lula passou a ser um grande agenciador do desejo geral ao ensaiar um mínimo circulo virtuoso na economia, com uma social democracia mínima, fundada de fato sobre o pacto político estranho que realizou. Resultado: certa vez ouvi, no mesmo dia, de um barão banqueiro e da diarista que trabalha em casa a mesma frase: "Lula fez muito bem para o Brasil".

Assim definitivamente, pela desmobilização da tradição crítica, pelos interesses graúdos bem garantidos, com boas perspectivas de negócios, e pelos pobres podendo sentir o gostinho de uma TV de plasma comprada em 30 meses, não havia por que existir, de nenhum modo, oposição política ao governo do então presidente, ex-pau de arara, ex-metalúrgico, ex-sindicalista, ex-socialista petista. Sua aprovação bateu e se manteve nos 80%, respondendo, de modo desigual, mas combinado, a interesses concretos diversos, articulados em seu corpo garantia, o que, considerando-se as clivagens ainda radicais do País, não deixa de ser uma verdadeira política do absurdo.

Para o desespero dos chiques entre si tupiniquins e paulistanos, Lula também continuou a sinalizar simbolicamente, abertamente, aos pobres com seu antigo habitus de classe, em festas juninas, churrascos com futebol e isopores de cerveja na praia privativa da Presidência, além do famoso futebolês, e assim convencendo-os facilmente e oniricamente, via identificação carismática - seu corpo transferencial - que eles não poderiam esperar nenhum ganho social para além dele, que ele, que era um deles, representava o limite social absoluto dos interesses dos pobres no País.

Ao final do período, um dado fantástico entrou em cena: com a falência adiantada, a partir de 2008, do capitalismo financeiro americano e europeu, o Brasil, com seu governo de esquerda a favor de tudo, se tornou um verdadeiro hype político e econômico global. Pela primeira vez na história deste País, dada a regressão e paralisação geral do sistema internacional, o Brasil, sempre algo avançado e algo regredido nas coisas da civilização, tornou-se "inteiramente contemporâneo" do momento atual do capitalismo global, que, em grande dívida consigo mesmo, não representava mais medida externa para países periféricos como o nosso. Noutras palavras, o capitalismo geral deu um grande passo na direção de sua brasilianização.

Assim, era necessário que surgisse tanto um novo modelo conservador que desse conta da avançada ruína neoliberal quanto uma injeção de esperança econômica para a crise geral, e nada como um bem-comportado mercado emergente como o brasileiro, satisfeito e integralmente convencido pelo sistema das mercadorias, para reanimar a ideologia mais ampla. Tudo isso Lula amarrou em seu amplo pacto, tramado em seu corpo retórico, que também tinha um grande potencial simbólico pop para a indústria cultural global, significante advindo do todo, nada estudado pelos cientistas sociais. Ele virou o cara, para um Obama em busca de alguma referência para o próprio descarrilamento econômico e social de seu mundo.

Enfim, liquidando a oposição, mantendo as práticas políticas fisiológicas tradicionais brasileiras, roubando a base social real da direita, promovendo uma mínima inserção social de massas pela via do consumo, exercitando seu carisma identificatório e pop com os pobres e com a indústria cultural global e servindo como modelo para o momento avançado da crise do capitalismo central, Lula simplesmente rapou a mesa da política nacional. Além, é claro, de sua proverbial estrela: no mesmo período o país descobriu petróleo e foi brindado pelo mercado do fetichismo universal da mercadoria com uma Copa do Mundo e uma Olimpíada! Certamente deve haver algum método, se não muito, em tal ordem fantástica das coisas.

Sua estrela, seu corpo carismático e sua habilidade pragmática, macunaímica para alguns, bras-cubiana para outros, certamente midiática e pós-ética, realizaram, com poucos mortos e feridos - aparentemente, sacrificou-se apenas a perspectiva crítica da esquerda, que é a minha - um verdadeiro pacto social a favor que, enquanto o PT de fato existiu, a direita jamais conseguiu realizar neste país.

TALES A. M. AB’SÁBER É PSICANALISTA E PROFESSOR DE FILOSOFIA DA PSICANÁLISE NO CURSO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO (UNIFESP). É AUTOR DE O SONHAR RESTAURADO - FORMAS DO SONHAR EM BION, WINNICOTT E FREUD (ED. 34, 2005)