quarta-feira, 20 de agosto de 2014

DONA CIDA E O BOLSA-FAMÍLIA: A CRÍTICA DO BETO


No dia seguinte ao nosso 11/9, o massacre de 7X1, reencontrei Dona Cida, uma antiga vizinha de minha mãe, que não via há uma década ou mais, passeando no parque. Protocolarmente perguntei como ia. O pior aconteceu, ela respondeu. Disse que ia bem, mas reclamou do Imposto de Renda da pensão que recebe do marido, “o Major”, militar morto há mais de 20 anos. Disse que estava difícil manter empregada porque tem muitos vagabundos que recebem Bolsa-Família (BF) sustentados por ela,  etc. Já desejando outros 10 anos sem ver Dona Cida, mudei de assunto. Está muito triste com o vexame de ontem? Ela me disse: Que nada! Estou é feliz pelo Beto, meu chihuahua. Imagina o stress dele? A cada rojão por gol da seleção era um terror! Já via a hora que ele ficaria viciado em calmante.  Desde ontem, tudo em paz, lá em casa.

Sempre há uma perspectiva Beto de um tema. Inclusive o BF.  Em toda época eleitoral, “Donas Cidas” repetem papagaiamente os truísmos sobre o programa: “É esmola, é muleta, eu quem pago por isto, etc.”.

As “Donas Cidas” têm diversos tipos de argumentos contra o BF. Algumas (poucas o admitem publicamente) simplesmente não aceitam que um pobre possa se beneficiar. Outras têm argumentação mais sofisticada. Tem “Dona Cida” que diz que:
  1. O BF é esmola. Mesmo que os dados mostrem que 8 em cada 10 beneficiários trabalhem.
  2. O BF representa um gasto grande. Mesmo que os dados provem que o retorno é de 3X1 por $ publico gasto (retorno em impostos, maximização da eficiência de investimentos públicos, redução de demandas, geração de riquezas, etc.) e que o custo total corresponde a 6% da conta de juros.
  3.  O BF deveria ter uma porta de saída. Os candidatos da oposição são este tipo de “Dona Cida”, porque dizem que o BF não promove o desenvolvimento dos beneficiários; mesmo que já haja uma miríade de programas neste sentido, e 18% dos beneficiários a cada ano saiam do programa, por aumento de renda. Isto é, a tal porta de saída já existe e tem gente passando por ela. Embora, a porta de saída seja também de entrada. E novos por ela cheguem e outros, outrora saídos, por ela retornem.

Com esse nível de argumentos das “Donas Cidas”, é fácil entender porque o BF segue um sucesso inquestionável :-).

Arrisco a dizer que a fraqueza dos argumentos das “Donas Cidas” vêm porque constroem suas críticas a partir do ponto de vista de que beneficiários são os que recebem o benefício.

Por isto (eu, um defensor do programa, por acreditar que Assistência é Direito e porque não conhecer nada mais eficiente e viável na escala que o Brasil demanda), quero propor uma crítica sob a “perspectiva do Beto”, outro lado. Algo que a Dona Cida original entenderia.

A crítica se origina na pergunta: Se 8 em cada 10 beneficiários trabalha e se 6 em cada 10 tem um emprego formal, por que eles precisam de um programa de complementação de renda? 

A resposta simples é porque os salários pagos são muito baixos. Portanto, depois de 10 anos de uma implementação encorpada, com as mudanças na economia do país e no perfil dos beneficiários, s que os maiores beneficiários do BF hoje não são mais os inscritos no programa, mas os empregadores brasileiros.

O BF pode ser considerado um subsídio para o empregador brasileiro. Mais uma “Bolsa-Rico”, que complementa os já existentes benefícios sociais a não-pobres: Bolsa-Botox (incentivo fiscal para gastos com saúde privada, de qualquer tipo e sem limite); Bolsa-Cirque-Du-Soleil (incentivo fiscal para investimentos em produtos culturais caros e destinados a uma pequeníssima parcela da população), Bolsa-Carro Zero (incentivo IPI); Bolsa-Viuvinha (Pagamento de pensão vitalícia para viúvas de segundos matrimônios para servidores públicos federais, como a que deixou o “Major” do Dona Cida, ), Bolsa-Safena (isenção de Impostos para idosos, mesmo ricos, desde que tenham laudo de doença grave, mesmo que não fatal) o Bolsa-CBF (isenções, renegociações eternas de dívidas, etc.); Bolsa-Friboi (subsídios em empréstimos ao agronegócio); o Bolsa-Férias (pagamento de salário-desemprego, mesmo que em um limite, para trabalhadores de classe média e alta classe média); Bolsa-Aposentadoria (aposentasoria integral para servidores que nao contribuem nem 69% do que deveriam); Bolsa-CarroAdaptado (isenção fiscal para pessoas ricas com algum problema de mobilidade em carros automáticos),etc. O Estado brasileiro é historicamente pródigo com quem não precisa, justamente com as “Donas Cidas”.

O BF pode ser visto como um mecanismo que faz o erário pagar uma parcela necessária e não paga pelo patrão. É como se todos fôssemos sócios desses patrões. Pelo Ponto de vista de Beto, percebo que sou sócio da senhora do outro lado, com cara de entojo, provavelmente amiga da “Dona Cida”, que trata com indiferença de senhora de engenho, o atendente da padaria que a serve.  Sócio involuntário dela e do patrão do atendente mal tratado.

Beto explica: A amiga da “Dona Cida”, evidentemente partícipe da elite, certamente emprega uma mensalista. Imaginemos que a mensalista fosse casada com o ajudante mal tratado, que eles ganhem a média mínima para as funções que desempenham e que tenham dois filhos em idade escolar (a média para um casal da renda/idade/cidade deles).

O problema é que mesmo empregados formalmente e ganhando um pouco acima do mínimo nominal (a média em SP par estas funções é de R$882,00/mês), o rendimento total combinado deste casal (incluídos aqui Vale-transporte, 13º, 1/3 de férias e PIS/PASEP, auxílios, etc.) corresponde a somente 52% das necessidades da família (critério DIEESE).  Se eles acessam o BF (e os demais programas de transferência de renda, aqui incluídos na análise) aos quais eles têm direito, seu rendimento aumentaria em R$ 368,70/mês. Como resultado, eles teriam alcançado somente 65% da renda necessária para viverem dignamente em São Paulo.

Portanto, o que o BF faz é minimizar (nem compensa totalmente) o impacto do baixo valor do Salário e assim subsidiar os empregadores. Assim, se o BF é muleta o é principalmente do empregador brasileiro.

“Dona Cida” pode contra argumentar que o BF subsidia os salários porque eles são pesadamente taxados no Brasil. “Dona Cida” tem razão quando diz que há um “salário oculto”, pago pelo empregador. Mas, se descontarmos o que na verdade é transferência ao próprio empregado (INSS, FGTS, PIS, 13º, férias, Vale transporte, Auxilio Alimentação, Auxilio-Creche etc.), a taxação direta sobre o salário não passa de 20%. (I (inferior à média da OCDE).Assim, mesmo com o “custo empregado”, o salário pago ainda seria bem inferior ao necessário.

Os defensores do BF argumentam que ele tem um documentado impacto positivo do BF sobre a média salarial. E que, com o crescimento da renda média, este subsídio aos salários tende a se extinguir. Isto seria verdade, desde que a Economia crescesse constantemente e a proporção da massa salarial na renda também. Porém, há extensa documentação de que toda Economia entra em desaceleração (às vezes também em recessão) periodicamente e, nestes períodos, achata a massa salarial e recompõe as taxas de lucro do capital investido. Este processo já começou no Brasil, depois do ciclo de crescimento anterior. Isto aponta para dizer que o BF, se depender só do crescimento econômico, seguirá subsidiando o dono da padaria, “Dona Cida” e suas amigas, ainda por muito tempo.  

Não é possível aumentar salários somente pelo Mercado, nem tão pouco na caneta, por decreto.  Isto não quer dizer que não haja uma responsabilidade na política de aumento real do SM, e em uma legislação que privilegie o salário. Também se sabe que os empregadores não podem responsabilizar os baixos salários exclusivamente ao mercado, ao contexto e internacional, nem ao nível global de preços nem tão pouco à cotação do rabanete na Bolsa de Chicago. Há que aplicar outros mecanismos. Mas, isto é tema para outra reflexão de Beto. Hoje o tema é o BF.

Assim, a única porta de saída do BF é um salário suficiente para as necessidades. Quando isto acontecer, o programa poderá ficar restrito aos que necessitam de Assistência, algo em torno de 40% dos atualmente atendidos.


Enquanto este dia não vem, as “Donas Cidas” seguirão os principais beneficiários do BF. E, já que sou sócio do dono, vou pedir desconto no pão na chapa. Não é Beto? Au, Au, Au



TAREFA E BIBLIOGRAFIA: VIDE SITE-> DESENVOLVIMENTO DO CURSO->TAREFAS COMPLEMENTARES


quinta-feira, 27 de março de 2014

CUIDADO: OS GRÁFICOS A SEGUIR PROVOCAM ASSASSINATOS, ESTUPROS, SEGREGAÇÃO, ETC.




Gráficos abomináveis,  que mostram que a violência contra mulheres (e homossexuais) é a manifestação tópica de preconceitos e conceitos dos mais distorcidos, inumanos.
Pesquisa IPEA de Percepçao Social, entrevistou 3810 pessoas, em uma amostragem com menor margem de erro que das principais enquetes de intenção de voto.
É ver, horrorizar-se e pensar: Como mudar isto?

O estudo todo














quarta-feira, 5 de março de 2014

As Notícias da Morte do Movimento Popular são um pouco Exageradas



Ciência é demolidora de consensos. Boa ciência serve para desdizer o que o senso comum, a timeline do facebook e a torcida do flamengo pensam ser verdade. E ciência da boa tem feito o mexicano abrasileirado, Gurza Lavalle (CEM, FFLCH-USP), brilhante herdeiro do tema de participação e movimentos sociais, na minha querida FFLCH.


Nos últimos 30 anos, os movimentos sociais, principalmente os da América Latina, foram muito estudados. Geralmente são identificados como atores essenciais nos processos de democratização. Seu desenvolvimento posterior à volta das eleições no continente, também é visto como uma evidência (causa ou reflexo, dependendo do analista) de uma suposta decadência democrática ou de uma “pós-democratização”, na qual a ação política se tornaria somente instrumental, neo-clientelista ou de "consumismo de bens públicos".

E 5 de cada 4 pesquisadores :-), parece identificar que, a partir dos anos 1990, houve uma mudança da sociedade civil e que ela se deu de forma substitutiva – isto é, com certos tipos de atores tomando o lugar de outros. Isso teria culminado, a partir de meados dos 90, numa preponderância das organizações não governamentais (ONGs), deslocamento que ficou conhecido como “onguização” dos movimentos sociais.

Associados à "Onguização", a maioria dos analistas identifica uma decadência (mais forte neste século) na capacidade de articulação e protagonismo politico dos movimentos. Tornou-se comum um “blues” de quando os movimentos populares eram ativos e fortes. Igual aos rubro-negros saudosos do time de Zico-Júnior :-) A tônica comum nas análises segue o consenso de que os movimentos populares, formados pelos próprios interessados nas demandas de mudança, teriam cedido espaço para organizações que também defendem mudanças, mas em nome de grupos que não são seus membros constituintes (Advocacy, na terminologia das ciências sociais). Essas ações supostamente teriam gerado uma despolitização da sociedade civil.

A pesquisa de Lavalle e equipe desmentem a tese da "Onguização".  Ele não entra no debate do que é ONG (este nome genérico, quase uma ficção linguística que coloca no mesmo saco gatos tão distintos quanto o Hospital Albert Einstein, o Asilo  Kardecista, a Consultoria disfarçada de ONG e a Associação dos Colecionadores de Carrinhos de Rolimã). Porém empresta da literatura tradicional a ideia da evolução dos atores sociais em  ondas distintas.  A 1ª onda seria a das organizações tradicionais, como as entidades assistenciais ou as associações de bairro (criadas em razão de demandas sociais de segmentos amplos da população, maiormente durante a vigência da ditadura). A 2ª onda, na qual as costumam ser agrupadas as organizações denominadas de ONGs e que, por sua vez deram origem às entidades articuladoras, aquelas que trabalham para outras organizações, e não para indivíduos, segmentos da população ou movimentos localizados).

A pesquisa utiliza como aproximação aos “movimentos sociais” são organizações populares, “entidades cuja estratégia de atuação distintiva é a mobilização popular”, como o Movimento de Moradia do Centro, a Unificação de Lutas de Cortiços e, numa escala bem maior, o Movimento dos Sem-Terra. Estas, na rede, estão em pé de igualdade com as ONGs e as articuladoras. Numa posição de “centralidade intermediária” estão as pastorais, os fóruns e as associações assistenciais. Finalmente, em condição periférica, estão organizações de corte tradicional, como as associações de bairro e comunitárias.

Em grande parte, a novidade da pesquisa se deve à aplicação de novas ferramentas, baseadas na análise de redes. A "Network Analysis" uma abordagem usada amplamente em Ecologia, Epidemiologia e Linguística. Ela detecta padrões de difusão, permite identificar estruturas indiretas e conexões. Assim, Lavalle e equipe começaram a superar as visões baseadas em abstrações ou em modelos teóricos mais ortodoxos do que o sistema de defesa de técnico gaúcho..

O método usado pela equipe para verificar a estrutura de vínculos entre as organizações foi o "bola de neve". Neste, cada entidade foi chamada a citar cinco outras organizações importantes no andamento do trabalho da entidade entrevistada. Adicionou-se a esta lista declaratória, as relações institucionais e financeiras.  Na cidade de São Paulo foram ouvidos representantes de 202 associações civis (as do tipo da primeira onda, excluindo portanto as "ONG's"), que geraram um total de 827 atores diferentes, 1.368 vínculos e 549.081 relações potenciais.

Quando analisadas as conexões, foi possível avaliar a influência das associações, tanto na sociedade civil quanto em relação a outros atores sociais e políticos. Esse resultado foi obtido por um conjunto de medidas que computam os vínculos no interior da rede, não só aqueles diretos ou de vizinhança, mas, sobretudo, aqueles indiretos ou entre uma organização e os vínculos de outra organização com a qual a primeira interage e aos quais não tem acesso direto. Assim, foi possível investigar as posições objetivas dos atores dentro das redes, assim como as estruturas de vínculos que condensam e condicionam as lógicas de sua atuação.

Essa rede permitiu identificar  as conexões políticas das associações. A sociedade civil se modernizou, diversificou-se e se especializou funcionalmente, tornando as ecologias organizacionais da região mais complexas, sem que essa complexidade implique a substituição de um tipo de ator por outro.  Em uma análise comparativa as Associações civis são mais conectadas do que as chamadas "ONG's".  vitalidade dos movimentos sociais, semelhante à das ONGs. As associações civis, formadas pelos próprios interessados, mostram conexões ativas tanto com atores públicos-governamentais/não-governamentais e privados. 

Assim, os estudos de Lavalle  contradizem a tese senso comum da “onguização”. Parafraseando Mark Twain, ao escrever a um jornal que havia noticiado sua morte: As Notícias da Morte do Movimento Popular são um pouco Exageradas :-) Todos os dados obtidos contrariam diagnósticos dos "viúvos dos anos 80", que insistiam de que a sociedade civil atual seria formada de organizações orientadas principalmente para a prestação de serviços e a trabalhar com assuntos públicos de modo desenraizado ou pouco voltado para a população de baixa renda.

Lavalle conclui que “as organizações civis passaram a desempenhar novas funções de intermediação, ora em instituições participativas como representantes de determinados grupos, ora gerindo uma parte da política, ora como receptoras de recursos públicos para a execução de projetos”. Absorver novos papeis não representou a perda dos anteriores, mas a sua transmutação. Assim, “as redes de organizações civis examinadas são produto de bolas de neve iniciadas em áreas populares da cidade e por isso nos informam a respeito da capacidade de intermediação das organizações civis em relação a esses grupos sociais..”

Outros estudos confirmam as conclusões deste trabalho, como os de Paulo Velho (UFES) e Lígia Lüchmann (UFSC) para quem “a sociedade civil é hoje funcionalmente mais diversificada do que costumava ser, com atores tradicionais coexistindo com os novos”. Assim, estudos como o de Lavalle vêm corroborar a ideia de que tendências mais visíveis não podem ser tomadas como hegemônicas e de que a sociedade tende a ser muitas coisas ao mesmo tempo. As classificações lineares ou evolucionistas servem para dar tranquilidade intelectual, ideia de controle e entendimento; mas não se verificam no tecido social. Para fora das portas da Universidade, o mundo segue extrapolando a teoria. 

Ao assumir a heterogeneidade e complexidade das organizações civis, há implicações não só para a análise, mas para a ação política e pública. Por exemplo, em relação à regulação sobre o terceiro setor. A heterogeneidade demanda um marco de análise menos engessado e, em tempos de definição do Marco Civil, pede leis menos restritivas, que não pretendam uniformizar; mas se concentrem em oferecer segurança jurídica.

Afinal,  já está cientificamente provado que a torcida do Flamengo está errada :-); logo a realidade não segue a opinião da maioria. Não concorda? Consulte sua timeline... :-)


Para ir além
  1. GURZA LAVALLE, A. e Bueno, N. S. Waves of change within civil society in Latin America: Mexico City and Sao Paulo. Politics & Society. v. 39, p. 415-50, 2011
  2. Mobilidade dos Movimentos Sociais, FAPESP, Fev 2014. MFerrari