sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

MANDELA ou TIO BARNABÉ?














Mandela foi provavelmente o maior líder político do pós-guerra.

Mandela escapou da sina de "morrer novo como herói ou viver tempo suficiente para se tornar um vilão".

Mas, não conseguiu evitar a docilização de sua imagem, como Gandhi, transformado em líder hippie e Che, em estampa de camiseta de grife.

O mundo pop, com a ajuda do CNA, transformou Mandela em um papai, dançando, sempre sorridente e bonzinho.

Onde havia um líder de esquerda (comunista, não socialdemocrata budista de Higienópolis), duro, firme, que não se esquivou de articular e apoiar a luta e a resistência armadas; colocou-se a imagem de um papai-noel político, uma espécie "Tio Barnabé”, negro sábio e contente.

Onde havia um polemista, criou-se uma unanimidade. E a unanimidade é inócua. Onde havia Rolihlahla (nome de “batismo”, que em Xhosa, significa “que traz problemas”), surgiu o Madiba, algo como um ancião e guia de sabedoria.

Mandela foi forte politicamente. Demonstrou  sabedoria de Madiba e habilidade política para conduzir uma transição sem derramamento de sangue em grande escala. Foi um mestre político ao trocar o "perdão" aos brancos pelo poder para seu partido e pela anistia ao passado. Foi extremamente hábil e forte para  liderar a transição de uma sociedade formal e legalmente desigual em uma sociedade, ainda mais desigual, mas formalmente igualitária.

Mandela foi fraco administrativamente e, em troca da pacificação do CNA, entregou seu governo (e os sucessores) para uma elite partidária ineficiente como gestora pública e profundamente corrupta. De parte dos brancos, o preço que Mandela pagou foi acordar o esquecimento e anistia dos seus (e de tantos outros) algozes, torturadores, ativos agentes ou simplesmente coniventes com as décadas de Apartheid. A Comissão da Verdade por lá nunca cumpriu seus objetivos e metade de seus membros terminou por renunciar descontentes com os rumos do "abafa". 

Docilizado, o legado de Mandela passou a servir para perpetuar o poder do CNA (um tipo de PRI versão sul-africana), marcado por sucessivas violências, restrições a imprensa e corrupção que beneficia uma pequena elite negra. Serviu para que os brancos da África do Sul ganhassem ainda mais dinheiro. Não se fez reforma agrária, e os oligopólios mineradores e do agronegócio prosperaram como nunca antes. 

Mandela foi essencial para a reinserção sul-africana na política e economia mundiais, trazendo capitais externos. E a África do Sul pós Mandela aumentou a desigualdade (veja gráfico) e a violência. 

Na África do Sul de hoje, de cada 10 presidiários, apenas um é branco; há a 2ª maior taxa de estupros do mundo, sendo que 8 em cada 10 vítimas são negras; e a 3ª maior taxa de assassinatos.  A Polícia sul-africana é a 2ª que mais mata no mundo (perde para a nossa:-(.[1]

No resto do mundo, a versão "Madiba" ajudou os outrora apoiadores do regime branco a virarem heróis da liberdade. Por 30 anos, EUA e Europa fizeram vistas e dinheiro grosso na AS. Também usaram o repressor e bem equipado exército sul-africano para apoiar as guerrilhas antimarxistas em Angola e Moçambique assim como atiçar clandestinamente outros conflitos, como Namíbia, Congo e no antigo Zaire.

No Brasil, a imagem do bom velhinho vem contribuir para deixar intactos nossos preconceitos e, permite-nos seguir com o extermínio de jovens negros e todas as outras formas disfarçadas de violência preconceituosa cotidiana contra os negros, até hoje considerados como mercadoria.

Morto, Mandela, que foi o maior herói político de uma era, seguirá a travar uma luta, desta vez contra a jaula da memória coletiva formatada pelos poderosos, que transforma tudo em show, produto e efêmeros trendtopics.




[1] Fonte: Crime and Violence Global Stats;  www.unodc.org

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A SITUAÇÃO ESTÁ BRANCA



“A carne mais barata do mercado é a carne negra”

O IPEA apresentou hoje dados que fazem que os (poucos, espero) que ainda insistem de que não há racismo no Brasil e, no máximo, discriminações por condição social fiquem com menos argumentos ainda.
Alguns dados do Estudo (feito com base nos dados do Censo 2010, PNAD e da Pesquisa Nacional de Vitimização) apontam não só para as mortes, mas para o que os autores chamam de manifestações do “Racismo Institucional” (fracasso coletivo das instituições em promover um serviço profissional e adequado às pessoas por causa da sua cor):

  1. A probabilidade de o negro ser vítima de homicídio é 8 pontos percentuais maior, mesmo quando se compara indivíduos com escolaridade e características socioeconômicas semelhantes.
  2. A cada 3 assassinatos, 2 são de negros.
  3.  O negro é discriminado 2 vezes: pela condição social e por sua cor da pele;
  4. Enquanto o homem negro perde 1,73 ano de expectativa de vida ao nascer, a perda do branco é de 0,71 ano.
  5. Somando-se a população residente nos 226 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, calcula-se que a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior em comparação com os brancos.
  6.  6,5% dos negros que sofreram uma agressão no ano anterior à coleta dos dados pelo IBGE, em 2010, tiveram como agressores policiais ou seguranças privados (que muitas vezes são policiais trabalhando nos horários de folga), contra 3,7% dos brancos.
  7.  + de 60% das vítimas negras não procuraram a polícia porque nela não confiam, contra 39% das vítimas brancas.

“Um dos componentes mais claros do racismo institucional  das polícias é naturalizar a relação entre pobreza e criminalidade, tomando incoerentemente a cor da pele como seu indicador visível. O resultado mais contundente deste tipo de atitude é que a taxa
de homicídios de jovens negros no Brasil, com a qual as próprias polícias contribuem de forma significativa, é bem superior às taxas de mortes de jovens de países em guerra”
As diferenças de escolaridade e renda entre brancos e negros diminuiu sem mostrar melhorias em outras dimensões. A situação segue “Branca”, isto é, sem mudança significativa.

O Estudo, parte do BAP, pode ser encontrado em:




sexta-feira, 11 de outubro de 2013

FELIZ DIA DO NADA


Tem dia de tudo o que precisamos de um dia para lembrar de que se esquece nos outros 364/365. Daí não precisar de "Dia do homem branco hétero de classe média". Todo dia já é dia do hegemônico.

Amanhã é Dia da Crianças (na definição da ONU, 0-17 aa). Hoje, Dia Internacional da Menina. Infelizmente precisamos destes dias.

É bom dar brinquedos no dia das crianças. Pena que a sociedade dá outros presentes de grego no restante do ano:
  • Crianças, nos Brasil,  são ainda 2 vezes mais pobres do que adultos (eram 4 xs há 15 anos). - - São 3,1 vezes mais vítimas da violência doméstica. 4.4 vezes mais vitimizadas a violência armada.
  • Há 6 vezes mais juízes do trabalho (para cuidar de 32% da população  do que de varas dedicadas à infância (41% da pop.). Crianças são condenadas à prisão (ou vc acredita que a Fundação Casa aplica medida sócio-educativa?) por até 3 anos sem direito a advogado e processo legal.
  • crianças recebem proporcionalmente menos da metade do investimento em saúde (41%)do que adultos.
  • de cada R$10,00 de incentivo para a cultura, apenas 0,61 são aplicados para atividades gratuitas dirigidas à crianças.


Eu poderia seguir esta lista até o dia 12/10/2014. Mas, acho que vc já pegou a ideia: a sociedade brasileira, o Estado, você, eu, o cara na mesa ao lado discriminamos as crianças, e as tratamos como semi-cidadãs (se é que existe isto). Em diferentes proporções, esta segregação é verificada em praticamente todos os países do mundo.

Coloque estes dados aí de cima entre parêntesis e multiplique pelo fator MACHISMO. 

Meninas sofrem ainda mais do que os meninos.

Mesmo que no Brasil não haja a terrível brecha de escolarização básica de outros países (320 milhões de meninas são proibidas de irem à escola, em todo mundo!), nem a institucionalização do casamento forçado, a dívida com as meninas existe por aqui tb. Ela se revela em proporções várias:
  • a precariedade do atendimento especializado em saúde.Alias, as políticas públicas raramente são desenhadas para as atender as condições específicas das meninas.
  • com exceção da violência armada, meninas são as maiores vítimas de Todos os demais tipos de violência,inclusive as mais sofisticadas e de difícil registro.
  • 47 em cada 100 vítimas de crimes de natureza sexuais são meninas (4 são homens adultos).
  • mesmo tendo mais escolarização do que os meninos, No futuro, esperam pelas meninas Salários mais baixos para as mesmas funções. E Proporção menor de acesso às carreiras mais valorizadas.

Mas estas não são as única vulnerabilidade  a qual estão expostas às meninas. É que os piores crimes de uma sociedade são os mais escondidos e portanto  mais difíceis de colocar em um gráfico de pizza. Quando chegam às estatísticas, já é tarde. É "desde menino que entortamos o pepino" do sexismo e suas manifestações socioeconômicas culturais, religiosas e diversos eticéteras.

" Pelos seus números vos conhecereis". E os números brasileiros (os mundiais tb) mostram que crianças e, em proporção cumulativa, ainda mais as meninas sofrem de um não oficializado apartheid.

E de tão banal a discriminação, acabamos por acha-la natural. Não é.

De tão beneficiados como grupo dominante que somos, nós adultos racionalizamos. Relativizamos. Fugimos da realidade. Poderia dizer que negar a realidade é um comportamento "infantil". Mas, seria injusto com as crianças. Infantil é algo que nossa sociedade deveria ser e não é.

Pensamos que "a infância passa". Mas, não passa, fica nas estruturas. Uma sociedade que trata desigualmente às suas crianças, perpetua a injustiça, embrenha a desigualdade, reduz suas possibilidades de transformação positiva. Tratar desigualmente as crianças (e ainda mais desigualmente as meninas) é cavar, com seus próprios pés, o abismo social.

Ao invés de nos transformarmos pelas crianças (sermos "como crianças"), transformamos as  crianças em grupo explorado, garantimos a perpetuação do ciclo de injustiça.

Leis para beneficiar idosos todo mundo acha bonitinho. Beneficiar Criança para que? Se elas sobreviverem e chegarem a ser idosos, a gente protege.  O discurso fácil diz que é possível incluir sem mexer nos seus privilégios, sem dividir a conta. Não é. 

Tratar as crianças (e as meninas) com justiça representará quebrar os privilégios adultos/machistas. Mas, quem abre mão de privilégios? O conceito de Direito Adquirido (principal argumento dos proprietários de escravos no Brasil  quando criticavam a proposta de Abolição) nos faz ignorar que não há Direito na Injustiça. 

"Mudar tudo o que está por aí" não se fará por compartilhamento nem curtidas de Facebook. Nem por passeata pós-modernas. A única subversão capaz desta tarefa  é Tratar com justiça as crianças. 

Justiça para Crianças, inclusive TODAS as meninas, implica em aplicar prioritariamente o orçamento público a elas. Criar e fazer cumprir leis que as protejam e respeitem a especificidade. Valorizar, privilegiar, sobrepor o interesse da criança ao nosso. Tornar-se intolerante com a desigualdade e o preconceito. Ouvir as crianças e dialogar com elas. 

Parafraseando o slogan de minha presidenta: "Sociedade desenvolvida é Sociedade que não  precisa de Dia das crianças nem de Dia das Meninas"

Como o texto ficou sombrio demais, melhor terminar com algo tipo:

Por um Feliz Dia das Crianças...

Melhor, por um dia em que a gente possa desejar FELIZ DIA DO NADA 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

A CHAPA, O ABISMO E A COLHER






A primeira conversa do dia (ao levar minha filha para a escola, ela vai muda:) é com Serginho, o chapeiro especialista em baguete com casquinha, no balcão da padaria. O tema geralmente é futebol. Daí, ao me ver entretido com uma leitura, perguntou-me se eu estava lendo sobre o São Paulo “dele”. Provoquei o torcedor do outrora glorioso dizendo que não me interessava por temas que eu não podia mudar. Estava agarrado mesmo com um relatório sobre as desigualdades entre “as condições de saúde materno-infantil entre os países”. Com cara interrogativa e na iminência da baguete torrar, Serginho me perguntou: E dá para mudar isto?

O relatório “A Brecha Assassina”, elaborado pela World Vision (Visão Mundial) tem a clara finalidade: Mostrar aonde as crianças seguem morrendo sem necessidade (19.000 por dia, de causas evitáveis/tratáveis!) e como reverter este quadro. Para isto, o relatório sai dos tradicionais rankings de medição nacional (aqueles o campeão é sempre a Suécia ou a Finlândia) e mapeia o fosso intranacional, isto é, a desigualdade interna nos indicadores de saúde infantil entre os pobres e ricos, dentro de cada país, segundo 4 indicadores:
  1. Expectativa de Vida: Esta medição mostra as atuais desigualdades na expectativa de vida entre grupos de pessoas e diferentes áreas de um país, incluindo mortes neonatais e de menores de cinco anos.
  2. Custo de Pessoal por Uso de Serviços de Saúde: Medido através de um indivíduo faz pagamentos do próprio bolso para cuidados de saúde.
  3. Taxa de Fertilidade (Adolescentes): Evidências mostram a correlação entre sobrevivência e idade da mãe (ligada à renda, escolaridade e condições físicas). Logo, a taxa de fertilidade na adolescência é uma representação da capacidade de grupo de população para sustentar seus filhos.
  4.  Cobertura dos Serviços de Saúde: Medido pelo número de médicos, enfermeiros e parteiras por 10.000 pessoas em um país. A evidência mostra que os países com menos de 23 médicos/enfermeiros/Parteiras por 10.000 pessoas são incapazes de chegar a toda a população com serviços essenciais de saúde de forma adequada. Medico cubano conta na estatística :-)
1


A primeira constatação de quem lê o sintético relatório é que a brecha é um abismo. Além do idioma que falarão uma criança nascida na Franca e outra no Chade não têm nenhum destino comum. Já sabíamos pelos relatórios tradicionais que a africana terá quase 280 vezes mais chance de morrer, antes de completar os 5 anos de idade, do que a francesa. Já era ruim? O Relatório da WV mostra que a criança pobre chadiana tem quase 1800 vezes mais chances de morrer, antes de completar 5 anos que uma criança de classe média francesa.

A segunda constatação é que dinheiro não é tudo. Vários países ricos têm brechas internas de saúde mais altas do que países de renda média ou mesmo baixa. Itália, Coreia do Sul não estão sequer entre os 20 menos desiguais para crianças. EUA quase está fora dos 50 melhores. Todos perdem para Cuba, Bielorrússia, Uruguai e Tonga. Nota do Autor: Não sei esta “Tonga” não é a mesma da Tonga da Mironga do Kabuletê kkk

Mas, o abismo não para aí, embora não demonstre o relatório, há ainda as diferenças subnacionais, as determinadas pela geografia na qual a criança nasce. Crianças pobres de regiões remotas são ainda mias prejudicadas do que as de regiões urbanas, mesmo quando têm faixa de renda equivalente.  São as desigualdades sobrepostas: renda, idade da mãe, região e etnia. Dentro de países altamente desiguais, como Brasil, África do Sul e Filipinas, uma criança nascida de mãe extremamente pobre, jovem e de minoria étnica tem em média 13 vezes mais chance de morrer antes dos 5 anos do que outra, de uma mãe branca de classe média da capital. Menos do que os mais de 150 vezes de há 20 anos, mas ainda feio.

Por ter seu foco na faixa da mortalidade infantil (abaixo de 60 meses), o relatório também não aponta para as desigualdades de mortalidade até o final da adolescência. As geradas por “causas externas”, principalmente a violência. Se este dado lá estivesse, veríamos que um menino pobre negro brasileiro que vence as probabilidades contrárias e sobrevive, terá 21 vezes mais chances de ser assassinado antes dos 18 anos.

Eis o abismo. E a colher? Bem, a colher é a que eu, você, o Serginho e todos nós temos nas mãos para tapar este abismo. Esta colher carrega somente um voto, uma voz, uma rede de relações, uma ação, uma coalizão. Enfim, nesta colher cabem uma disposição, um compromisso e uma ação. Desprezível? O próprio relatório aponta que não.  
Para tapa-lo, ou ao menos diminui-lo, é necessário entender o que provoca o abismo.  E o relatório mostra que alguns aspectos que, se resolvidos, poderiam tapar, em um intervalo de 10 anos, mais de metade deste abismo. Pouco? Isto já representaria, nas atuais taxas de natalidade, salvar mais de 3.000.000 de crianças por ano. Alguns dos fatores listados no relatório, sobre os quais o Serginho tem poder de influência, são:
  1. Aumento do investimento (público e privado, aquele que vem do orçamento familiar) nos primeiros anos de vida, que é o período com o maior potencial de proporcionar boas condições de saúde para a vida.
  2.  Políticas e práticas e estabeleçam infraestrutura, serviços e trabalhadores de saúde (Médicos/Enfermeiros/etc.) presentem em áreas urbanas periféricas e rurais.
  3. Condições de trabalho que respeitem os direitos e a condição feminina, já que a saúde e condições de trabalho da mulher estão associadas diretamente a sobrevivência e saúde da criança.
  4. Seguridade social inclusiva: Em todo o mundo, 4 em cada 5 pessoas não têm o apoio de cobertura social básica. Este item, no qual o Brasil está entre os 20 melhores do mundo, contribui para uma melhor saúde, incluindo menor mortalidade.
  5. Comportamentos sociais que: privilegiem a criança, pratiquem e disseminem igualdade.


De colher em colher, esta brecha, construída, pode ser revertida. 

Já quanto ao São Paulo do Serginho... Bem, neste caso melhor uma pá, para ele cavar um buraco e se esconder de vergonha até o time melhorar. 

O relatório pode ser encontrado em:



domingo, 4 de agosto de 2013

IDHM: DETALHES TÃO PEQUENOS DE NÓS 195 MILHOES, A PERGUNTA QUE IMPORTA & A MÃE.


Dizem que ando meio impaciente. Impaciente é sua avó! :-) OK. Admito uma leve inquietação com alguns temas, como matérias e discussões em época de lançamento de relatórios de pesquisas, como o Censo e o Índice do Desenvolvimento Humano, o IDH. E, não passa um mês sem algum destes relatórios. Nesta semana, saiu o estudo sobre o IDH Municipal, o IDHM.

Eu tento ficar na minha. Mas, o povo insiste em comentar o IDH como uma tabela do campeonato brasileiro. É a mania por rankings. Subiu! Desceu!Passamos a Argentina? Tudo parece orbitar a velha questão se “o meu é maior do que o seu”.

Para me acalmar conto até 10, fora de ordem. Difícil, diante da preguiça expressa nos textos. E as informações muito relevantes? Tipo: Conceição do Lago-Açu (MA) tem renda per capita 20 vezes inferior a de Águas de São Pedro (SP).  E pensar que eu vivia sem saber disso? A mãe do jornalista mora em Conceição do Lago-Açu? :-)

Cansativo ler que a Veja vai destacar que nós não passamos nem o Uruguai e que a Carta Capital dirá “que nunca antes na história deste país” subimos 34 posições. Ambas as afirmações completamente irrelevantes.

O IDHM é filho do IDH. Assim como o pai, combina três dimensões[1]: Saúde; Educação e Renda. Mas, é diferente do pai. Tem adaptações metodológicas profundas na área de Educação com ênfase ao “investimento” (foco na população adolescente e jovem) e ainda se utiliza parâmetros de renda mais precisos. Para que os indicadores possam ser combinados em um índice único, eles são transformados em índices parciais, cujos valores variam entre 0 e 1, sendo que quanto mais próximo de 1 mais alto será o nível de Desenvolvimento Humano. Os dados do IDHM vêm do Censo de 2010. Como é distinta, não se pode, portanto comparar o IDHM2011 com as medições feitas pelas metodologias anteriores. Por isto também foram “remedidos” os IDHMs 1991 e 2000. Isto gerou um panorama completo e espacialmente referenciado. Até municípios que não existiam em 1990 podem saber qual era o IDHM do seu atual território, antes da divisão.

Alguns “poréns” são armadilhas para os apressados e picaretas.

O primeiro é que o IDH (que dá base ao IDHM) não foi feito para ser medido por município. Mesmo com as competentes adaptações feitas pelo IPEA, não funciona bem em unidades territoriais muito pequenas e interligadas abertamente. Em português claro, o IDH de um município contamina o outro. E os municípios são unidades altamente permeáveis. Isto inviabiliza uma análise isolada, listas de top 10 e outras preguiças mentais.

Segundo, o IDHM trata de unidades muito díspares: os municípios. Daí, não se podem tirar grandes conclusões de pérolas como: “43,5% dos municípios possui longevidade superior à média nacional”. Neste tipo de agregação, Borá (805 habitantes) e São Paulo (11,3 milhões) entram como UMA unidade. É estatística que só serve para fazer gráfico colorido, bonito de postar, depois da foto do macarrão que você fez e acha que alguém está interessado. Aposto que o jornalista maníaco por ranking faria um brilhante comentário tipo: “YUMMY! Também quero”.1,2,4,7...

Terceiro é que, quando estou quase calmo, abro o jornal e me deparo com “especialistas em tudo” de plantão a compararem o IDHM com IDHs nacionais. Ex. São Caetano do Sul tem IDHM maior do que a Espanha. Cacimbas tem IDHM menor do que Moçambique. Cacimba! As metodologias de medição são incomparáveis. É mais ou menos como comparar estes jornalistas e especialistas com gente que saiba do que está falando. 1,2,8,3...

DETALHES TÃO PEQUENOS DE NÓS 188 MILHOES.
Não estou cuspindo no índice que tanto comi. Bom lembrar que o “Atlas de Desenvolvimento Humano”, que traz também o IDHM, é uma excelente base comparativa dos quase 6000 municípios brasileiros. São 180 indicadores. Para quem quer se debruçar sobre os dados, há muita informação. Mas, precisam ser correlacionadas com outras, inclusive com um mínimo conhecimento sobre o que se passa nestes municípios.

Embora o IDHM não seja uma medida significativa no varejo, é riquíssimo quando examinado no atacado. Analisar municípios por grupos, entender as diferenças entre cidades limítrofes. Evoluções atípicas, etc. Estes dados geram perguntas. E já disse Guimarães: “Deus é traiçoeiro! Ele faz é na lei do mansinho”. O IDHM só faz sentido se examinado nos detalhes que seu conjunto revelam, nos movimentos.

Se você tem síndrome de Odete Roitman e acha que “este país tupiniquim nuca muda”, pare o texto por aqui e volte para as frases falsas da Clarice Lispector no Facebook ou ainda vá ver se alguma das Quatro Pontes (PR) partiu. Os dados são inequívocos: o país mudou e muito, em 20 anos. A classificação do IDHM médio (o que mostra o todo) foi de Muito Baixo (0,493, em 1991) para Alto Desenvolvimento Humano (0,727 em 2010). Houve (e seguirá havendo) evolução nas 3 dimensões do índice. Isto costuma acontecer porque elas são ligadas por fios correlativos. Mais educação, mais saúde, mais renda. Mais renda, mais saúde e educação. Coloque na ordem que quiser. As dimensões se alimentam mutuamente, mesmo que não simultaneamente.  Daí, em séries temporais longas, exceto quando há causas externas extemporâneas (guerras, epidemias, campeonato mundial do Corinthians, etc.), veremos que elas evoluem abraçadinhas.

A outra constatação do conjunto é que o país continua espacialmente muito desigual. O PNUD fez um mapa em cores para que até jornalista entendesse. (Obs.: Já reparou porque nestes gráficos Verde ou Azul é sempre bom e Vermelho ruim? Será que a maioria dos analistas é palmeirense e gremista?). O Centro-Oeste “enricou”, as diferenças diminuíram no conjunto. Mas, ainda são enormes entre o Norte e Nordeste e as demais regiões.

O detalhe é que há a desigualdade dos desiguais. A desigualdade média é maior dentro dos municípios com pior IDHM. Se o IDHM de um município com grande desigualdade é baixo, então os pobres deste município estão ainda em pior situação do que os pobres em municípios menos desiguais. Mesmo que isto afete proporcionalmente uma pequena parte da população (6%), porque ocorre basicamente em municípios pequenos (menos de 10 000 hab.), é neste grupo de 11 milhões de pessoas que estão 7 em cada 10 miseráveis do país. Logo, entender e reverter o problema nestes pequenos municípios é chave para erradicar a miséria.

As mudanças mais significativas (observadas em toda a análise) IDHM 2010 são:

1.     Saúde (medida pela esperança de vida ao nascer): Neste índice, o Brasil conseguiu chegar ao desenvolvimento muito alto. A cada ano, os brasileiros vivem mais, em todo o País. Nenhuma cidade está na faixa "baixo" ou "muito baixo". A maioria dos brasileiros (62,2% da população) vive em áreas com o IDHM-Longevidade considerado “Muito Alto”. A diminuição significativa da mortalidade infantil (com grande participação da sociedade) e a queda na fecundidade são as principais causas do avanço neste índice.

a.     A maioria absoluta das pessoas vive em cidades que baixaram para menos de 19 por mil nascidos vivos a mortalidade infantil. Antecipando a meta (ODM) para 2015.

b.     Hoje, mais de 50% dos municípios brasileiros têm taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição da população. Isto ajuda a longevidade, mas já apresenta uma preocupação: envelhecimento da população em idade ativa. Um viés estrutural do IDH (da qual o IDHM não consegue escapar de todo) é que ele termina por privilegiar populações maduras. Além desta vantagem natural do índice, no Brasil os idosos são mais ricos do que as crianças em uma medida de 3 para 1.Logo, principalmente no Sul, há muitos municípios que apresentam um alto IDHM justamente por serem “velhos”. E estes municípios tendem a cada vez menores. Daí, seu excelente resultado não significa muita coisa, exceto como tema das partidas de dominó na praça.

c.     O avanço só não é ainda maior por uma razão: a violência, que se espalhou das grandes metrópoles para as cidades pequenas e atinge especialmente nos jovens. O crescimento na expectativa de vida nos últimos dez anos – 46% no Brasil e 58% no Nordeste – seria até 1.8 ano maior se não fosse o impacto da violência entre os jovens. A taxa de mortes violentas entre jovens chegou a 134 por 100 mil hab., mais do que o dobro do já alto índice da população em geral, de 54 por 100 mil.

2.     Educação é a dimensão que mais avançou em termos em termos relativos: 128,3%. Mas ainda é a única área do IDHM que não se pode classificar como ALTA. Não compare com outros países, lembre-se de que a metodologia brasileira é mais exigente (tem foco nos últimos anos de cada nível de ensino e não nos primeiros, como o IDH tradicional). Em 20 anos o Brasil universalizou o ensino fundamental, triplicou a inserção na secundária e quase dobrou a no ensino superior.

a.     No ensino fundamental o crescimento alcançou estabilidade, mostrando que os resultados na universalização do ensino alcançaram maturidade. É o tal “se piora estraga”. É preciso manter as taxas. Porém, devido ao curto tempo, o Brasil só universalizou o ensino fundamental há 15 anos (o Uruguai o fez há 73 anos, a África do Sul há 31), ainda haverá impacto da educação na renda, nos próximos anos. Educação é um índice que melhora rapidamente, mas demora mais para impactar os outros.

b.     O índice da secundária foi o que cresceu mais na última década, puxado pelo fluxo escolar de jovens 2,5 vezes maior em 2010, em relação a 1991. Um crescimento de 156%.

c.     Todos os comentários que li mencionam que devemos contrapor este avanço na escolaridade (o que o IDHM mede) com o problema da qualidade. Besteira. Não que a qualidade da educação (seja isto o que for: resultado em exames, horas de escola/ano, etc.) não seja relevante para o país. Porém, não o é para a avaliação do IDHM.  O IDHM tem que ser comparado endogenamente, ie, consigo mesmo.  Acompanhe a ideia: A desigualdade entre o indivíduo A (que tem o curso completo da faculdade de 1ª. linha) e outro, B (com 3 anos de escola) é X.  Suponhamos que B agora tem 8 anos de escola. A desigualdade e agora é de Y. Mesmo que a escola de B seja ruim e a de A tenha piorado, assim mesmo Y será MENOR do que X.  A desigualdade educacional é enorme, mas a evolução na escolaridade em si (mesmo a de baixa qualidade) representa impacto na renda, saúde e redução do fosso. A questão da qualidade educacional precisa de outros elementos de análises. Deve ser medida nos impactos extraescolares do ensino, tais como produtividade, satisfação, patentes, etc. O IDHM mede a matéria-prima, a qualidade deve ser medida pelo produto final que gera a educaçao.

d.     Com o aumento geral dos níveis de escolaridade, cai o corelação ano Escolaridade X Renda. Quanto mais gente na escola, menos a escola é uma diferença competitiva para obter maiores salários.  Nas grandes cidades mais ricas, esta relação caiu quase 1/3 em 20 anos. A escolaridade perde peso na redução efetiva das desigualdades. Daí, outras barreiras de desigualdade ganham mais importância (escola privada X pública, idiomas, etc.).

3.     Renda: A melhoria corresponde a um ganho de renda per capita de R$ 346,31 em 20 anos.

a.     Renda evoluiu equilibradamente pela queda da desigualdade e pelo aumento da renda de trabalho. Uma boa notícia que mostra potencial para que a renda continue a crescer.

b.     A desigualdade de renda brasileira transparece no IDHM. Norte e Nordeste têm, neste índice a maior brecha em relação às demais regiões. Mesmo sem crescimento econômico, mantidas as taxas atuais de desemprego e renda de trabalho, se conseguir reduzir a desigualdade de renda (GINI) para a média latino-americana, o Brasil já adicionaria outros R$101,70 de renda a cada família brasileira, em 2020 e teria erradicado a miséria. Noutras palavras, a desigualdade ainda é principal causa de pobreza no Brasil.

c.     Municípios com renda menor têm mais crianças e adolescentes proporcionalmente. As políticas específicas para as famílias aonde vivem estas crianças e adolescentes ainda não tiveram os impactos necessários.

d.     Municípios com renda menor tendem a se dividir mais. Nos últimos 20 anos, 68% das emancipações deram-se em áreas deprimidas em termos de renda. Mesmo tão criticadas pelo senso comum, o curioso é que as emancipações têm, em 83% dos casos, efeitos positivos no índice (aumento maior do que a média da microrregião) do território emancipado.
 
A PERGUNTA QUE IMPORTA...

 Algo muito central passa despercebido nestes relatórios. IDH não mede o Desenvolvimento Humano. Não apenas porque o Desenvolvimento é mais amplo do que estas dimensões (inclui participação, interação, liberdades, etc.). A ideia do IDH não é medir o Desenvolvimento, mas o POTENCIAL para tal.

A hipótese que baseia o IDH é que se um indivíduo tem saúde, renda para as suas necessidades e conhecimento (educação) terá mais opções, uma gama de escolhas ampliadas na vida. Enfim, poderá se desenvolver.

No entanto, o aumento do IDHM acompanhados de fenômenos aparentemente contraditórios (como aumento das violências principalmente dirigidas a jovens e mulheres, monetarização da vida, privatização de serviços essenciais, decadência nos indicadores ambientais, aumento do endividamento de curto-prazo, segregação espacial urbana, e outros) pode indicar uma sociedade que, a despeito de suas crescentes possibilidades (potencial para o Desenvolvimento), faz escolhas que terminam por fazerem mal e prejudicar as atuais e futuras gerações.

Assim, é natural e desejável a busca por melhorar os índices que compõe o IDHM. Mas, a pergunta principal diante do índice não é “Quanto?”, mas “E daí”?

A questão central passa a ser: “Em que medida as possibilidades ampliadas de escolha geram melhoria da vida da sociedade como um todo?”. E se esta medida não é adequada, “o que se deve fazer para informar melhores escolhas pessoais e coletivas?”. Isto não é uma pergunta puramente de políticas de Estado. É uma pergunta sobre a construção do tecido social. Uma sociedade com poucos espaços comuns, precários canais de diálogo, que não compartilha serviços, recursos e decisões terá dificuldades de construir identidades consistentes e de fazer boas escolhas. “A socialização pelo consumo é monológica, voluntária e não obrigatória, individual e não coletiva”.  Mesmo em países de altíssimo IDH, e que tiveram ainda crescimento nos últimos anos, sua população crê que sua vida está pior do que antes. Somente 28% dos Alemães pensa que seu país é melhor hoje do que há 20 anos. No Canadá este grupo não passa dos 35%.

Não basta para uma sociedade ficar mais rica, mais escolarizada e mais longeva, ela precisa ser uma sociedade melhor para todos os seus participantes atuais e futuros.

Ainda acha mais importante medir se o seu é maior do que o da Argentina? Vá ver o tamanho do IDHM de Pontão (RS)*! :-):-)

 *0,725

 
Mais sobre o IDHM 2010 em:












 



[1] Saúde (medida pela esperança de vida ao nascer); Educação (% de 18 anos ou mais com ensino fundamental completo; % de 5 a 6 anos frequentando a escola + % de 11 a 13 anos frequentando os anos finais do ensino fundamental + 15 a 17 anos com ensino fundamental completo + % de 18 a 20 anos com ensino médio completo) e; Renda (medida pela renda real mensal, em agosto de 2010)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

QUAL É O CUSTO DA CORRUPÇÃO?



Noutro dia, em uma conversa sobre os protestos contra “tudo o que está aí”, perguntaram-me qual é custo da corrupção. Meus interlocutores esperavam uma resposta econométrica, destas que lhes provesse dados numéricos para corroborar o que eles sabem com certeza: de que são vítimas justas e indefesas de um Estado corrupto ao qual sustentam com seu trabalho.

Comecei minha resposta pela velha e necessária definição de termos. Considero corrupção como todo desvio de finalidade de um recurso e/ou direito. Logo, há corrupções. E acontecem em distintas esferas (Estado, Empresas, Igrejas, Associações) e formas (diretas, quando os recursos são usados ilegalmente; ou indiretas, quando são aplicados contrariamente aos princípios de seu uso).

As corrupções diretas (superfaturamentos, concorrências viciadas, etc.) são evidentes e as únicas passíveis de punição. Nas indiretas, mais sutis e impuníveis, o recurso é usado para beneficiar poucos e/ou ineficiente-displicentemente. Cabem aqui as organizações religiosas e civis que alavancam agendas de poder ou negócio; as empresas que geram demandas de bens desnecessários e/ou influenciam leis por lucro; as políticas/práticas públicas preferenciais para não pobres, tais como incentivos fiscais excludentes, aparato policial priorizado em proteger a classe média; a Justiça que garante direitos só aos com recursos para reclamá-los; as normas que priorizam o controle à vida; negar acesso a uma tecnologia que salva vidas aos que não podem pagar; o orçamento destinado à guerra e não à paz ou à infraestrutura e não às pessoas. E muitos mais eticéteras.

Há também corrupções individuais, de todos os tipos. A sonegação de impostos, ativa ou através de compras ilegais ou descontos indevidos, é roubo. Estacionar em uma área indevida é desviar a finalidade do uso de um espaço. Conduzir depois de beber ou acima da velocidade corrompe um direito. Priorizar interesses adultos aos das crianças rouba a prioridade delas ao desenvolvimento. Poderia estender a lista com as corrupções no uso de recursos naturais.

As estimativas sobre custos das corrupções são imprecisas porque cada uma delas desencadeia prejuízos sociais e/ou impede ganhos. Mas, é possível deduzir o custo mínimo, através de um caminho metodológico, semelhante ao usado em Astrofísica para encontrar corpos celestes, pelas distorções. Se assumirmos o pressuposto de que os recursos e capacidade da sociedade são suficientes para garantir os Direitos (alimentação, moradia, saúde, educação, paz social, participação, etc.), toda não realização destes (exceto as decorrentes de opção individual) pode ser considerada nos custos das corrupções. 

Mais importante do que cifras e rankings subjetivos, as corrupções têm enormes custos humanos. Números? Cito um: mais de 165.000 mortes anuais evitáveis de crianças e adolescentes, no Brasil, só para contar as geradas por falta de saneamento, atendimento em saúde, violências e poluição atmosférica (agravadas pelo modelo de transporte individual movido a incentivo fiscal).   

Para reduzir os custos das corrupções é necessária uma intolerância moral que rejeite maniqueísmos, exerça crítica/autocrítica traduzida em participação para a transparência e reoriente as ações.

Em resumo, decepcionei meus interlocutores.

sexta-feira, 8 de março de 2013

PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES




Nada contra flores e cartões no dia 8 de Março. Nada contra frases e declarações de efeito (talvez culpa masculina?:) etc. Mas, além das flores e cartões, este dia é importante como memorial de que INFELIZMENTE a injustiças e desigualdades de gênero ainda são muitas, diversas e perpetradas em todos os níveis e atores sociais.  Dentre as diversas manifestações desta injustiça, a violência seja talvez a mais significativa, porque reflete perversidades culturais, econômicas e políticas.

Que no Brasil mais de 20.000 crianças e adolescentes são assassinados por ano, sabemos. Que a maioria destes jovens é do sexo masculino, também. Porém, as mortes inaceitáveis de meninos e adolescentes são só um minúsculo fragmento do problema as violências: aquelas que são registradas e institucionalizadas através das certidões de óbito.

Não percebido pelos registros fatais está um enorme contraste: se a violência letal por causas externas atinge principalmente crianças e adolescentes do sexo masculino (em torno de 80% dos óbitos registrados na última década e quase 90%, no caso de homicídios), a relação se inverte nos atendimentos do SUS. Os atendimentos femininos por violências representaram de 60% das notificações; na faixa dos 10 aos 14 anos de idade: 68%! (Fonte: SINAM).

Violências físicas representaram 40,5% do total de atendimentos. Em segundo lugar, as diversas formas de violência sexual, que registram 19,9% dos  atendimentos acontecidos em 2011 (Um total de 10.425 crianças e adolescentes, a grande maioria do sexo feminino: 83,2%). A maior incidência registra-se na faixa dos 10 aos 14 anos de idade. Meninas e Adolescentes são quase 4 vezes mais vítrimas de violência moral do que os meninos e adolescentes do sexo masculino.

A violência sexual mais frequente é o estupro: 7.155 casos (59% do total). Assédio sexual e atentado violento ao pudor também são significativos: entre 15 e 20% dos atendimentos.

Como uma estimativa de subnotificação para estes casos é, no mínimo de 1 em 3 (um caso notificado para cada 3 acontecidos), podemos afirmar que Mais de 30.000 sofreram violências de natureza sexual. 20.000 meninas são vítimas anualmente de estupro. A proporção de vítimas com acesso a serviços de apoio psicossocial não chega a 30%. Segundo o próprio Ministério da Justiça, 350 agressores foram denunciados à justiça. Em uma conta rápida, a chance de um perpetrador de violência sexual contra meninas e adolescentes ser levado à justiça é de quase 1 para 100. Para comparar, a chance de um assaltante de bancos ser preso é mais de 10 vezes maior. Conclusão difícil de ser admitida: Bancos valem mais do que a vida destas meninas.

Nas “violências que matam aos poucos”, as meninas e as adolescentes são as principais vítimas. Como são sistematicamente impunes, as violências contra meninas e as adolescentes torna-se um triste parâmetro, que se verificará nas mulheres jovens e adultas. Sempre importante lembrar que 87,8% das mulheres vítimas fatais de violência interpessoal foram agredidas anteriormente. E nada aconteceu a seu agressor.

Uma triste curiosidade, no Estado de São Paulo, o total de investimento em centros de referência de apoio a mulheres vítimas de violência (R$ 3,1 M) é inferior ao orçamento destinado a troca de serviços de jardinagem (R$ 3,3 M)!  As flores são mais importantes, infelizmente.

Portanto, além dos cartões de das flores, poderíamos nos perguntar como fazer par que mulheres (especialmente meninas e as adolescentes) tenham direito a ter paz também nos outros 355 dias.

PARABÉNS PELO 8 DE Março.