segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Subsídio nos meus olhos é Refresco: E Agora José?



 
José é um tipo que encontro com mais freqüência do que gostaria. Qualquer fosse a freqüência seria mais do que eu gostaria. José, nome fictício mas tipo real, é encontrado em festas de família, senta-se na poltrona ao lado no avião, compartilha uma fila de supermercado comigo. Em resumo, encontro José em situações compulsórias.

José pode ser empresário bem sucedido ou não. Vez por outra é empregado. José também é aposentado e, em um dia que azarado, dirige justamente o taxi que eu peguei.

José sempre tem críticas a tudo. Os políticos, a igreja, os clubes de futebol. José acha que jogador de futebol e qualquer um que tenha estudado menos que ele ou seja mais preto do que ele, ganha muito. José diz paga mais impostos do que tudo mundo. Tem certeza de que todos lhe roubam, de que ninguém é punido.

Além das críticas comuns, ultimamente, José anda indignado com o atraso nas obras da Copa. José se indigna com filas de aeroporto e sente vergonha do banheiro que os gringos encontrarão, quando vierem para a Copa. A mesma vergonha e indignação que nunca dedicou a uma fila de posto de saúde ou à lista de espera para vagas em creches. Posto de saúde e creches só incomodam a José, quando a empregada dele (que tem uma insistência irritante para que ele assine a carteira dela) falta ou se atrasa por estes motivos.

José sabe que é o único justo e que seu DVD pirata, seu recibo fraudado de médico, seu caixa 2, seu produto comprado de contrabando são pequenos direitos aos quais ele faz jus. José sabe que só há insegurança nas ruas e que a pena de morte baixaria a criminalidade. As frases preferidas de José são: “Este país não tem jeito”. “Isto aqui nunca será primeiro-mundo”. “Precisamos de pessoas diferenciadas, na política”.

José é um homem que se considera muito bem informado. Lê a Veja, as primeiras manchetes do mesmo jornal. Admira o Arnaldo Jabor e tem certeza de que a Miriam Leitão deveria ser candidata ao Nobel de Economia. Já leu, nenhum até o final, alguns livros que estão na lista dos 10 mais vendidos, inclusive algum sobre uma menina que rouba livros...

E José também gosta de conversar comigo. Eu atraio José aonde eu vou. Sempre puxa assunto. Não entende um mp3 no meu ouvido, um livro na minha mão como sinais de “nem venha”. E José não consegue conversar por mais de 5 minutos sem xingar o sistema de cotas (mesmo que não se importe que as Universidades Públicas sempre tenham dado cotas, nos cursos mais disputados, para a alta classe média que pode pagar boas escolas para neles ingressarem). Principalmente, José não resiste a mencionar suas refinadas análises do Bolsa-Família. José leu em algum lugar que ninguém mais quer trabalhar por culpa do BF. Também leu que tem muita gente que não precisa e recebe o BF. Leu que os beneficiários do BF gastam tudo em pinga e que seus filhos serão certamente ladrões de seu rico e justo dinheiro. José tem certeza de que ele trabalha para pagar o BF de quem não trabalha.

Se eu tivesse paciência com José (confesso que já não tenho), poderia citar-lhe um estudo feito por Alexandre Schwartman, um insuspeito homem da elite, (Escola de Chicago, até o DNA) acerca dos custos de subsídios governamentais no Brasil. E ainda completar com o estudo de Paes de Barros (IPEA, TD 671) sobre o BF e com os trabalhos de meu colega de FEA, Simão Silber sobre bancos e de Amir Khair, sobre dívida pública.

Vamos aos números resumidos:

1. O Bolsa-Familia custa por ano menos do que R$15 Bilhões. Beneficia diretamente a 41 Milhões de pessoas.

2. Bolsa-Família X Bolsa-Empresário
a. Os 3 principais programas de crédito subsidiado do BNDES custarão neste ano + de R$30 Bilhões só a parte dos subsídios. O total de beneficiários, contando-se aí os indiretos (empregados e fornecedores) é de 2.300.000 pessoas.

3. Bolsa-Família X Bolsa-Banqueiro
a. O custo que o governo paga para continuar acumulando reservas internacionais ACIMA do que é o nível recomendado pelo próprio FMI. O custo é estimado em R$60 Bilhões (que é a perda por comprar títulos americanos ao invés de vender outros, aqui, indexados pela SELIC).

4. Bolsa-Família X Bolsa-Mutuário
a. Através da CEF e de outros agentes de crédito, somente em 2011, R$32 Bilhões serão subsidiados para pessoas não-pobres. A cadeia beneficiada não passa de 7 milhões de pessoas, nos cálculos da própria CEF.

5. Bolsa-Família X Subsídios
a. Setor Privado e Saúde receberá através das isenções de IR outros R$11 Bilhões.
b. Cultura (Circo du Soleil da vida, Sociedade de Cultura Artística, comedinhas da Globo-Filmes, e outras iniciativas desde que vc tenha uma boa assessoria p/captar): receberá outros R$3 Bilhões.
c. Computação, Automóveis, Empresas de Navegação: Só estes 3 programas de incentivo custam quase R$ 7 Bilhões.

Resumindo, os “Bolsas-Ricos” custam ao país R$ 143 Bilhões/ ano, isto é quase 10 Bolsa-Família.

Se José ouvisse esta explicação diria que o BF incentiva a ociosidade (mesmo que 97% dos beneficiários trabalhe), enquanto estes programas geram riqueza. Bem, se usarmos os dados de Paes de Barros, para cada R$ 1,00 aplicado no BF, R$13 retornam em forma de impostos, redução de custos com serviços assistenciais, redução de custos com repetência, etc. Já nas “Bolsas-Ricos” o retorno médio estimado (nunca avaliado) é de 1 para 8, o que é um bom retorno para este tipo de ação

Meu foco aqui não é se estes programas são ou não eficazes. Meu foco é José. O Brasil segue um país no qual o Estado beneficia mais aos não-pobres, inclusive a classe média, mas José tem certeza de que subsidiado é o outro. Quando ele é beneficiado, o subsídio vira incentivo, reparação, etc.

Mesmo com todos estes dados, José seguirá com suas convicções porque se ele admitir os dados teria que mudar de crítica, mudar de vida, mudar de revista semanal. E José não quer mudar. Assim, se você encontrar José por aí, mude de fila, de festa, de taxi, etc...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

BRASILEIRO NÃO É "TÃO BONZINHO"...


Eu sou muito novo para ter visto :-), mas me contaram, vi no Youtube, etc que na década de 80 havia em um quadro de humor na TV onde uma personagem (a atriz americana Kate Lira) era sempre enganada, mas ingenuamente repetia o bordão: “brasileiro é tão bonzinho”.

Bem, a julgar por Duas pesquisas recentes (excelentes trabalhos dos “sociólogos de sabonete”, isto é, sociologia aplicada a pesquisas para que as pessoas comprem mais). Brasileiro não é bonzinho.

Era de se esperar que os últimos 5 anos de crescimento econômico que fazem a festa do consumo de carros a iogurtes, também tivessem reflexo no montante de brasileiros que doa e no montante doado pelos brasileiros. Não teve.

Em países em crise como Espanha e Irlanda, não houve queda na quantidade de pessoas que doam. E mesmo a queda do montante médio foi pequena. No Brasil, nada mudou nas duas versões da pesquisa (2008 e 2011). Somos um país onde poucas pessoas doam pouco. Pelo menos, através dos mecanismos sociais de doação (entidades filantrópicas, religiosas, de ajuda mútua, etc.).

Um das pesquisas, feitas pela GFK em 14 países (13.950 pessoas com mais de 15 anos em 14 países: Alemanha, Bélgica, Brasil, Espanha, EUA, França, Holanda, Hungria, Itália, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca e Romênia.) estima que 29%, ou um em cada três brasileiros é doador para instituições filantrópicas.

A média mundial é de 38%. 2 em cada 3 das pessoas na Holanda e 50% da população do Reino Unido e da Suécia contribuem com dinheiro todo ano. No entanto, os alemães fazem jus à fama de mão fechada :-) 20% somente doam. (PS- Nos EUA, 41% dos americanos afirmam ter o hábito de doar dinheiro.)

Das pessoas que doam dinheiro, mais da metade (52%) revela que pretende doar este ano o equivalente a R$ 456,00 (até 200 euros). Já no Brasil, 73% doam até este teto.

A pesquisa mostra ainda que quem doa mais roupas e cestas de alimentos, tende a doar menos dinheiro. Na outra via, quem destina mais tempo para trabalho voluntário, doa mais dinheiro também.

1. Para quem doam?

1.1. No Brasil: Para as organizações de bem-estar de crianças estão em 1º no ranking (56%) e para as organizações religiosas (24%).
1.2. Na Europa: As crianças ganham também (39%) e Programas humanitários e/ou combate à pobreza (34%).

2. Por que doam?
2.1. Brasil: 74% afirmam que realizam doações por conta da orientação religiosa ou filosófica. Índice + alto do mundo. 18% por se sentirem relacionados à causa
2.2. Europa: 50% afirmam que realizam doações por conta da orientação religiosa ou filosófica. 35% dos europeus porque se sentem relacionados com a causa

3. Por que não doam?
3.1. Brasil:
  • 61% dos que não doam, afirmam que não tem recursos ou que já doaram, mas não doam mais.
  • Outros 28% dizem que não confiam nas instituições. Por exemplo, antes de para as crianças, os doadores do Criança Esperança doam porque confiam na Rede Globo (8 em 10 diz nem conhecer a parceira UNESCO). E isto vale para o bem e para o mal. Do lado dos que não doam, a antipatia também não e com a causa, é com a Globo.
  • Um pequeno contingente (sincero) diz que não doa porque não quer.
3.2. Na Europa: 21% dos que não doam afirmam ser por vontade própria.


Os fatores de análise dos motivos das doações encontra os dados de outra pesquisa, de Mário Matos. Nela, ela analisa o quanto um “selo socioambiental” influencia na decisão de compra. Quantos estão dispostos a pagar a mais pelo valor socioambiental agregado?

A conclusão é que o valor agregado por uma imagem socioambiental existe, embora seja limitado, mais forte em mulheres e não vinculado a uma causa. Além disto, Matos aponta para a constatação de que a decisão é baseada mais na reputação e consistência da marca do produto do que na causa em si.

Por esta pesquisa, o famoso ditado “dize-me com quem andas que te direi quem és”, no caso de valor socioambiental é o contrário: “dize-me quem és e te direi com quem andas”

Difícil concluir muito deste tipo de pesquisa. Mas, os dados parecem indicar o crescimento econômico brasileiro tem tido reflexos na conta de supermercado, mas não nas doações. 

E, quando doamos, fazemos mais por orientação e confiança do que por destino ou resultado. Curioso é que nos vemos como um povo muito bom. 84% dos entrevistados se consideram generosos. Nossa auto-imagem é de Madre Teresa de Calcutá, nossa ação não.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

UM PASTOR DO SÉC.XVIII, MINHA ESPOSA & A MATEMÁTICA DA MUDANÇA



Jonh Maynard Keynes (que para os economistas brasileiros representa mais ou menos o que o “Apóstolo Paulo” significa para a Igreja) ao ser questionado por um repórter se não estaria se contradizendo em relação ao que havia escrito anos antes, rebateu: “Quando os fatos mudam, eu mudo minha opinião, e o senhor o que faz?


O que provoca esta mudança? É possível provocar a mudança e controlar seu rumo? Como? 

Eu, por exemplo, há duas décadas tento sem sucesso mudar as idéias de minha esposa. Por isto, se você é casado, pode não acreditar, mas as pessoas mudam de opinião:-) 

Há cotidianos exemplos bem sucedidos nas quais o marketing (inclusive o religioso) muda idéias, faz as pessoas acreditarem que precisam de algo para serem felizes, crerem que o que era out agora é in e etc. Pagarem mais por uma marca que não entrega um produto diferente de seu concorrente mais barato. Trocarem suas ideias políticas por outras para não terem que bloquear todos os amigos nas redes sociais, etc.

Mas, mesmo as bem sucedidas e premiadas mentes do marketing reconhecem que a mudança é ciência imprecisa, de alto risco. Para cada Leão de Ouro de Cannes há centenas de fracassos. 

O estudo sobre a mudança é uma questão antiga. Filosofia e Sociologia (e Política) já tratam dela há séculos. No caso da Filosofia há milênios. Mais recentemente, a Administração passou a se dedicar a estudar o problema. Para turbinar contas bancárias de consultores e editoras, nas últimas décadas, criou-se até um nome para a área: Teoria da Mudança. E seu filhote:  “Gerenciamento da Mudança” que, caso venha em inglês "Change Management" fica mais caro.

Um excelente estudo sobre os padrões de mudança está em “The Theory that would not die” (Uma teoria que não morreria), de Sharon Bertsch McGrayne, da Yale University Press

McGrayne trata do Teorema de Bayes, cujo nome é uma homenagem a um matemático e pastor presbiteriano do século 18, isto é, um cara muito parecido com um pastor presbiteriano no séc. 21 :-)  OBS: É uma ironia que um pastor presbiteriano baseie uma teoria da mudança já que nós presbiterianos somos conhecidos, junto com os torcedores do América-RJ e os PSTU, como um dos grupos mais imutáveis da História :-)




Voltando a Bayes, McGrayne trata das seguintes perguntas essenciais: 

Como devemos modificar nossas crenças à luz de informações que recebemos? 

Devemos nos ater a conceitos, mesmo depois eles se tornaram insustentáveis? Ou abandoná-los muito rapidamente na primeira sombra de dúvida?

Ela responde a estas questões com a ajuda do Pastor Presbiteriano. 

Na sua essência, o teorema de Bayes trabalha com uma inversão engenhosa de pensamento: Se você quiser avaliar a força de sua hipótese, dadas as evidências, você também deve avaliar a força das evidências dada a sua hipótese. 

Bayes foi o primeiro cara a estruturar a ideia de que a mudança concreta é impulsionada pela realidade e não o contrário como querem fazer crer os gurus modernos da mudança, ao venderem os mitos dos líderes messiânicos que transformam tudo por sua vontade e gráficos de PowerPoint.


O teorema tem uma longa história e surpreendentemente complicada, narrada em detalhes no livro. Desde a formulação do matemático Richard Price, passando pelo ilustre matemático francês Laplace, que estendeu a aplicabilidade do teorema. O livro conta que Bayes, como as camisas listradas, entrou e saiu de moda em um campo científico após o outro. No século passado, tornou-se um ponto de discórdia entre grupos rivais de matemáticos, antes de desfrutar de um renascimento nos últimos anos.

O teorema em si é bem simples. 

  1. Parta de uma hipótese provisória sobre o mundo (e qual hipótese não é provisória?), atribua a ela uma probabilidade inicial (“probabilidade anterior” ou simplesmente, “anterior”). 
  2. Depois, colete evidências potencialmente relevantes e use o teorema para recalcular a probabilidade da hipótese à luz da nova evidência. Esta probabilidade revista é chamada a “probabilidade posterior” (ou simplesmente “posterior”). 
  3. Ao fim o teorema de Bayes estabelece que: “a probabilidade posterior de uma hipótese é igual ao produto de (A) a probabilidade prévia da hipótese e (E) a probabilidade condicional de a evidência dada à hipótese, dividido por (N) a probabilidade de novas provas.”

P= A*E/N


A autora conta um exemplo concreto. Suponha que você tenham uma moeda de 0,50 e pode trocá-la por outra. Há três moedas disponíveis. Mas, duas delas verdadeiras e uma falsa.  Você sabe que a falsificação sempre “dá cara”, cai com mesma face para cima.
Se você escolher aleatoriamente uma das três moedas, a probabilidade de que ela seja a falsa é de 1 em 3. Certo? Essa é a probabilidade anterior (A) da hipótese de que a moeda seja falsa. Agora, suponhamos que depois de pegar a moeda, você lança três vezes a moeda escolhida dá “cara” todas as vezes. Isto é, você fica fortemente desconfiado de que escolheu justamente a moeda falsa. Você quer saber agora a probabilidade posterior (P) de escolher uma falsificação? A resposta, usando teorema de Bayes (cálculo misericordiosamente omitido:-), é de 4 em 5. Você, portanto, reviu sua estimativa de probabilidade de pegar uma moeda falsificada de 1 em cada 3 para 4 em cada 5. Noutras palavras, o que era um risco pequeno (pegar a moeda falsa) passou a significar uma altíssima probabilidade. A experiência mudou sua idéia. Muito provavlemnte, você ficaria com sua moedinha de 0,50 :-)

Bayes é talvez o primeiro matemático moderno a trabalhar seriamente com o conceito do não-sabido, do incerto, do que nunca (talvez) seja esclarecido, nesta categoria estão a matérias escura do universo, o que minha esposa guarda na bolsa e o que acontece com as tampinhas de caneta Bic. 

Dois séculos depois, embora os Economistas sigam ignorando o que ignoram :-) , o conceito de Incerteza é essencial na Física e Matemática.

Em face da incerteza, o raciocínio de Bayes insere três perguntas:

1. O quanto estou confiante na verdade da minha crença inicial?

2. Partindo do pressuposto de que a minha crença original é verdade, o quanto estou confiante de que a nova evidência é precisa?

3. E, se eu não partir do pressuposto de que minha crença original é verdade (se isto for indiferente), o quanto estou confiante de que a nova evidência é precisa? 

Esta 3ª pergunta é chave porque ver uma evidência de algo que você previamente acredita é mais fácil. Vide um torcedor que sempre tem evidências de que o time dele foi roubado pelo juiz. Um proto-Bayesiano, o também matemático David Hume, sublinhou a importância de considerar a probabilidade de provar, quando formulou seu famoso axioma: “não se deve confiar na suposta evidência de um milagre, ao menos que seja ainda mais miraculoso crer que o milagre seja falso”.

O raciocínio Bayesiano ajudou a aproximar pontos de das evidências. Ajudou teorias a se sincronizarem com o universo. Assim, a formulação da mudança em Bayes é a crença reformulada pela experiência.

Hoje é comum dizer que as pessoas resistem às mudanças porque não a entendem. Usando Bayes, podemos fazer outro diagnóstico. Ser refratário à mudança pode ser porque simplesmente as evidências não apoiam a mudança que se quer alavancar. Em resumo, quem garante que a hipótese do guru (ou do chefe) esteja certa?

Poderíamos resumir o que a Teoria de Bayes nos ensina hoje em uma frase: Duvide, Reexamine as evidência, mude de opinião.

Bai de uei, ao rever o Teorema de Bayes, descobri porque não consigo mudar a ideia da minha esposa. Ela sabe, pelas evidências adquiridas em duas décadas, que o marido dela não diz (nem escreve) coisa com coisa.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

“EU TE DISSE”: CONSELHOS, CONFERÊNCIAS PARTICIPAÇAO POPULAR NO BRASIL




Há quase 20 anos anos, quando eu tentava virar cientista político, escrevi e defendi a primeira tese acadêmica, no Brasil, enfocada na análise (no nível nacional) sobre Conselhos da Criança e do Adolescente (CDA’s). Quando da pesquisa, o ECA e as portarias regulamentares dos CDA’s tinham pouco mais de 2 anos e a universidade ainda oscilava entre os polos de tecer loas à “emergência popular” e o que criticava a “despolitização da política”.

Na época, analisei a composição do Conselho Nacional, de todos os conselhos estaduais (alguns ainda em processo de formação) e dos conselhos das 20 maiores cidades brasileiras. Minha conclusão foi de que a primeira geração dos Conselhos representava a institucionalização dos mecanismos de participação. Em resumo, os CDA’s não aumentaram a participação popular, eles foram consequência desta. Eles proveram um mecanismo de influência e de decisão em políticas públicas de atores sociais consolidados. Os participantes dos CDAs não eram grupos excluídos. Eram os grupos já influentes (e geralmente os mesmos) que agora ganhavam a força da lei para exercer seu poder. Gramsci na veia! :->

Na mesma tese, apontava que embora os conselhos existam no Brasil desde a década de 30, e os fóruns já eram uma realidade desde meados dos anos 80, os CDA’s eram um protótipo (bem-sucedido pelos critérios políticos) de um novo tipo de mecanismo de participação, mais efetivo, institucionalizado e amplo. E, que as circunstâncias políticas proviam o ethos para o formato “conselhista” (conselhos paritários, fóruns e conferências) ampliar para todos os setores das políticas públicas.  Isto não era uma previsão, clarividência é com os Economistas e pais-de-santo kkk. Apenas segui a consequência da minha hipótese: Se havia crescente participação popular enfocada em setores (e não em teses partidárias ou ideologias, como no pré-64), o formato “conselhista” colhia sucessos políticos e as circunstâncias e sistemas políticos brasileiros propiciavam a oportunidade, os conselhos iriam proliferar. Em resumo, como havia participação popular (a despeito do discurso comum, maiormente da esquerda tradicional, de crescente alienação da vida pública) ela iria se materializar em conselhos. Apontei que as forças políticas tradicionais (partidos) que apostassem na emergência dos conselhos (e investissem energia em influenciá-los e, mesmo, instrumentalizá-los) ganhariam força. Os que os desprezassem, perderiam capacidade de influência.

Também apontei que o processo de escalonamento "conselhista" trazia suas próprias contradições (que trabalhei, na análise teórica, na tese de doutorado, 3 anos depois) e perversões, quer iriam gerar ajustes internos de sobrevivência, cristalizações conservadores e, por fim, reações (outros movimentos e mecanismos) que, um dia, iriam lhe superar. Em resumo, Habermas me guiou para entender o surgimento, Weber a consolidação, Marx a superação (ninguém jamais entendeu da finitude humana como o crente Marx kkk) e Lula a instrumentalização kkk.

O tempo passou, desloquei-me para a Economia e pensei que minha tese estava destinada às grises estantes da FFLCH-USP. Eu mesmo nunca mais reli minha própria tese. Tem coisa mais chata do que tese acadêmica? Só assistir a Golfe pela TV :-> Daí, pensei que ninguém mais fosse lê-la, mas me surpreendi quando a vi citada amplamente em dois recentes estudos (UFMG e IPUPERJ) e em uma Pesquisa (IPEA) sobre os conselhos no Brasil. Não é que meu X-Tudo analítico de 1994, segue provocando análises? E todas parecem validar a hipótese. Sinistro, diria meu filho. Nem eu concordava muito comigo há 20 anos.

A revisão do IPEA sobre os dados governamentais constata que mais de 5 milhões de pessoas ajudaram a formular, implementar ou fiscalizar as políticas públicas no Brasil. Foram realizadas nos últimos anos, 73 conferências nacionais temáticas para debater e propor políticas públicas. Dos 114 conferências realizadas no Brasil nos últimos 60 anos, mais de 70%  aconteceram nos últimos 10 anos. Isto revela um evidente escalonamento deste mecanismo. 

5 milhões é pouco mais de 2% da população. Pouco? Que nada. Em um cálculo estimativo rápido (usando a média de membros de cada grupo X a média de participantes por grupo), estes 5 milhões de participantes representam quase 30.000.000 de pessoas, ou mais de 15% da população. Se usarmos os índices de participação estimados pelo Observatório Europeu de Democracia o equivale a 3 vezes mais a média de participação das democracias consolidadas (com mais de 15 milhões de habitantes).  Um exemplo, na França todos os mecanismos de participação popular canalizam menos de 8% da população. Isto é superado apenas em países de população menor, como na Suécia, a campeã mundial neste indicador, com 23%.

Mais da metade dos conselhos nacionais de políticas públicas que contam com participação popular foram criados ou ampliados nos últimos anos. Durante esse período, programas estruturantes como as medidas conjunturais foram decididos e implementados por meio destes mecanismos de diálogo. Foram criados ou ampliados diversos canais de interlocução do Estado com a sociedade - conferências, conselhos, ouvidorias, mesas de diálogo etc. A autora da análise, Simone Mateos, arrisca a dizer “que já configuram o embrião de um verdadeiro sistema nacional de democracia participativa.”


Nas 73 conferências nacionais foram discutidos temas como: Políticas de Assistência, Desenvolvimento Econômico, reforma agrária, reforma urbana, comunicações, segurança pública, inclusão social, saúde, educação, meio ambiente, segurança pública, igualdade racial, dos direitos das mulheres, minorias de todas as configurações.



Variam os temas, mas o formato é sempre o “conselhista”. Em uma estrutura congressual (algumas conferências começam com debates por bairro ou unidade, escola, posto de saúde, etc.). Todas têm etapas municipais que discutem teses de um documento base e elegem representantes para o encontro regional e/ou estadual, de onde saem os delegados nacionais. Delegados de órgãos públicos (algumas vezes ministros e mesmo o presidente) participam de seus grupos de trabalho e das plenárias das conferências nacionais. Observadores do Ministério Público, do Judiciário e do Legislativo também se fazem presentes.

Em vários dos temas foram criados ou ampliados os Conselhos Nacionais (que geralmente estão estabelecidos nos 3 níveis federativos e/ou ainda em regiões específicas: bacias hidrográficas, polos industriais, etc.). As diretrizes aprovadas nas conferências nortearam políticas públicas elaboradas, fiscalizadas e avaliadas pelos 61 conselhos de participação social. 33 foram criados ou recriados (18), ou ampliados (15) desde 2003. Em 2010, 45% de seus membros eram do governo e 55% da sociedade civil.

As formas de escolha e ocupação dos assentos variam muito. Mas, em 91% dos casos, reflete outras estruturas organizadas (sindicatos, conselhos de classe, associações de moradores, usuários, etc.). Noutras palavras, estes mecanismos refletem um movimento participativo muito mais amplo do que eles mesmos. E já existente. Para usar um chavão: eles são a ponta do iceberg.

A análise tradicional chora as pitangas saudosas por tempos quando a política era mais vivida pela sociedade. Os dados nos mostram que a participação popular existe e é altamente significativa embora não se enfoque em projetos de sociedade e sim em temas de interesse específico. Não gosta? Você preferiria todos engajados em uma discussão sobre os modelos econômicos ou a angústia do homem moderno frente ao dilema ontológico da efemeridade? Talvez em outro planeta. Hoje,  uma característica da política nas democracias contemporâneas é o foco em temas.

E as conferências e conselhos não ficam na discussão. É o que comprovam os 2 estudos citados. Muitas das suas deliberações já se tornaram decretos, portarias ou projetos de lei aprovados ou em tramitação no Congresso. Isto sem contar em leis estaduais e municipais.
Um dos estudos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenado pelo grande Professor Leonardo Avritzer, analisou o acesso a serviços públicos de saúde e educação em cidades com mais de 100 mil habitantes e constatou que aquelas com maior participação popular apresentaram proporcionalmente 3 ou 4 vezes mais matrículas em creches e no ensino fundamental, além de 10% mais consultas de leitos do SUS. Seu desempenho administrativo também era melhor: com uma receita corrente 70% superior às dos municípios com baixos níveis participativos, os mais participativos tinham uma receita tributária 112% maior.

Já o estudo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), conduzida pela a brilhante e gatíssima ex-aluna Thamy Pogrebinschi,  procurou medir o impacto da participação popular na atividade legislativa. Ela constatou que 21% dos projetos de lei e quase 50% das propostas de emenda constitucional têm evidências de influência das deliberações de alguma conferência. Nos período de 2004-2008, ¾ das leis e 90% das emendas constitucionais que foram aprovadas no Congresso traziam convergências com diretrizes das conferências. Mesmo que tenha gente que continua papagaiando que o Congresso não repercute em nada a sociedade. Resultados preliminares de uma 2ª etapa do estudo mostram que projetos de lei com este foco correspondiam a 18% do total que tramitava no Congresso no final de 2009.

Tudo isto não quer dizer que o povo chegou ao poder. Nem que o Congresso tenha menos poder por conta dos conselhos. Nem tão pouco que estes mecanismos não estejam sujeitos à manipulação. Em uma sociedade aberta ao conflito e ao dialogo, tudo está. Nem significa que o governo realmente termine por implementar o que escuta dos conselhos. Nada ocorre fora da realidade de poder e tudo é por ela permeada. Os próprios conselhos comumente apontam que suas opiniões são pouco respeitadas quando finalmente da implementação das políticas. Reclamam da falta de mecanismos impositivos, de sistemas de monitoramento transparentes, etc. Internamente, há a crítica de que as conferências têm estrutura concentracionista. Assim, poucos grupos (mais poderosos política e economicamente) podem controlar grandes conferências.

Os Conselhos aumentam a permeabilidade a influência dos mecanismos do Executivo, mas ainda pouco podem fazer para melhorar a escuta do poder Judiciário e tornar mais acessível o poder que deveria escutar por natureza, o Legislativo. Os conselhos também são mecanismos tradicionais de participação, encaixam-se com a politica institucional, não dão conta das dinâmicas de participação desinstitucionalizada que emergem das redes espontâneas atuais. 

Os conselhos também não superam a timidez dos canais complementares de participação, previstos na Constituição de 88. Na Suíça, 30.000 assinaturas convocam um plebiscito sobre qualquer tema não constitucional; nos EUA, na maioria dos estados, 1% dos eleitores podem convocar plebiscitos; 11 países da União Europeia têm mecanismos para projetos por iniciativas populares muito mais simples do que os brasileiros, etc.

Mas, quais as alternativas? O conflito violento? Deixar a influência só para os lobbys que atuam no Congresso (estes sim, muito mais excludentes e elitistas e muito menos transparentes)? Uma “classe média” desorganizada (com notável exceção da elite representada por sindicatos da elite do funcionalismo público e dos grupos empresariais), tem sua influência exercida pelo poder aquisitivo e pelos privilégios de posição. Noutras palavras, não é uma maneira mediada de disputa de poder. É uma imposição de força, seja econômica, seja de escolarização, seja de cor da pele, etc. 

Nenhum dos problemas e vícios do sistema invalida o fato de que hoje os conselhos são o principal mecanismo de participação política direta no Brasil. Ainda que sejam insuficientes e falhos. Au contrarie, esta constatação traz para um nível essencial da agenda política a necessidade de aprimorar estes mecanismos, minorar seus vícios e torná-los mais transparentes. Também é interessante analisar o quanto os demais mecanismos de participação (aqui incluo desde os institucionais tradicionais como partidos até os “espontâneos” como os grupos de alta mobilização e baixa organização) têm sido influenciados ativa ou reativamente pela ascensão do “conselhismo”.

Mesmo com todas as falhas e contradições, é difícil achar um analista que não concorde que as políticas sociais e setoriais que existem e seus respectivos orçamentos não sejam também (e, em alguns casos, principalmente) influenciados pela participação popular. Os sistemas de saúde (SUS) e assistência (SUAS) teriam outra configuração e prática (piores, na minha e na opinião da maioria dos especialistas) se não fossem os conselhos.

Antes de sair por aí saudosamente lembrando-se do tempo em que se discutia política nos bares ou repetindo “achismos” como “na Europa o povo é muito mais politizado” é importante lembrar que a participação política complementar institucional (com todas as suas contradições) está mais viva do que nunca.


Diante da realidade de 2011, poderia baseado na minha tese de 1994, repetir o bordão daquela moto de desenho animado: "Eu te disse" :-)