segunda-feira, 27 de junho de 2016

TODO DADO SERVE PARA QUEM TEM A CONCLUSÃO PRONTA

O texto abaixo, FSP 27/6/16, é um bom exemplo de preconceito e ideologia disfarçados de pesquisa. O texto quer, usando um estudo feito pelo terrivelmente anti-ECA MP de São Paulo, convencer o leitor de uma coisa: a culpa é principalmente da família (logo, não é minha, nem sua, nem do Estado). Vamos ao jogo dos 7 erros:

1.      Chama os adolescentes em conflito com a lei de “menores infratores”. Isto não é um problema semântico. É ideológico. Menor é MENOS (do que adulto) e infrator é aquele que é unilateralmente CULPADO (mesmo q não seja responsável), i.e., não há problema na lei, há em quem a quebra.
2.      Nenhum dos dados é comparado à média geral. Ou seja, não se comparam com os dados dos “não-infratores”. E As categorias são propositalmente agrupadas para reforçar a conclusão (ou tese, já existente, antes do dado).
3.      Por exemplo, ao dizer que 66,10% dos “infratores” vêm de famílias com renda de 1-5 SM quer te convencer que infração está associada à pobreza. Mas, é mentira porque 61,5% da população em geral (todos nós) está entre 1-5 SMs. O corte certo seria 1-2 SMs (pobreza). Mas ele foi estendido propositalmente no gráfico para dar um IMPACTO.
4.      Para construir a manchete (e dizer que 2 em 3...), eles SOMAM e igualam Pai Sem Contato + Pai Separado c/Contato + Órfãos de pai. Isto para nos convencer que estas categorias são iguais, de que qualquer coisa fora “família de comercial de margarina” é o mesmo que nada. O dado omite adolescentes que vivam com “pais substitutos”(companheiros das mães, padrastos) Enquanto se sabe que presença e ausência de afetividade são questões difíceis de serem atribuídas assim.
5.      Vamos usar o critério deles para a população em geral e ainda assim a conclusão não se sustenta. 41% dos adolescentes brasileiros hoje vive em um arranjo familiar não convencional (embora a direita conservadora religiosa insista em dizer que o “normal”, isso é, o que mais se repete é o comercial de margarina.), mas (ponderando renda) apenas 0,32% deles têm conflitos com a lei contra 0,28% nos lares tradicionais. Ou seja, isto não explica. Não há causalidade, no máximo são fatores concorrentes (acontecem juntos e um potencializa o outro).
6.      No item “antecedentes” é feita para dar a impressão de que 36% dos adolescentes tem “bandidos” na família. O MP não faz este tipo de levantamento, ou seja, este dado é “declaratório”. Isto não bate com nenhum dos únicos 2 levantamentos “documentais” feitos, o últ9imo em 2012, pelo MJ. Nestes se confirma que apenas 28% dos adolescentes têm contato direto com familiares com antecedentes
7.      Embora o levantamento queira ser extrapolado a todos os adolescentes em conflito com a lei, apenas 18% dos questionários foi aplicado aos que não foram internados. Isto é, os resultados são distorcidos pelo grupo com conflitos mais sérios.

Ser bem tratado, acompanhado por uma família (no formato que seja) é um direito de toda criança e todos os dados que temos reforçam que este bem trato diminuem nossas chances de problemas na vida. Mas, reduzir o fenômeno dos meninos encarcerados a seus pais, à sua renda é miopia auto infringida.

No fundo a única coisa totalmente precisa na matéria é a frase do Professor Alvino “Todo mundo só o (adolescente) enxerga como inimigo, como bandido, e ele acaba necessariamente se enxergando como inimigo."

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2 em 3 menores infratores não têm pai dentro de casa


FABRÍCIO LOBEL
ROGÉRIO PAGNAN

Cansado de ver a mãe agredida pelo padrasto, o estudante Filiphe Gomes, aos 12 anos, decidiu enfrentar um adulto violento. Puxou uma faca e disse que não aceitaria mais aquilo.
A tragédia de Filiphe foi ver a mãe tomar o lado do marido. Foi o impulso que faltava para que fosse morar na rua, debaixo do viaduto do Chá, no centro da capital paulista. Não demorou para ganhar más companhias e, na sequência, um novo abrigo: a Fundação Casa, após um assalto à mão armada.
Filho de uma família desestruturada, de baixa renda e baixa escolaridade, Filiphe, hoje o MC Cafuzo, dá vida a números de um levantamento inédito do Ministério Público de São Paulo. Segundo o relatório, dois em cada três jovens infratores vêm de famílias que não têm o pai dentro de casa.


O estudo leva em conta cerca de 1.500 jovens entre 12 e 18 anos que cometeram delitos na cidade de São Paulo entre 2014 e 2015. Desse universo, 42% dos jovens, além de não viver com o pai, não tinham nenhum contato com ele.
Ainda segundo os dados, 37% dos jovens entrevistados têm parentes com antecedentes criminais, o que pode indicar uma influência negativa dentro da própria casa. "Pela experiência, é possível dizer que uma família funcional e presente, seja qual for sua configuração, é o primeiro sistema de freios que um jovem terá sobre suas condutas", diz o promotor Eduardo Del-Campo, que durante um ano catalogou casos de menores infratores.
"Vi meu pai duas vezes na vida. E é nítido quanto peso a ausência dele teve psicologicamente", diz MC Cafuzo, hoje com 24 anos e pai de uma menina de dois. Desde os seis anos de idade, ele e os dois irmãos mais velhos tomavam conta de casa, já que a mãe, auxiliar de enfermagem, fazia jornada dupla –além de trabalhar, estudava para ser enfermeira.
"Ela saía às 6h da manhã e voltava às 23h. Eu ia para a escola de manhã, voltava pra casa e tinha que cuidar das tarefas domésticas. No intervalo disso, a gente ia para a rua", conta ele. Foi na rua onde teve o primeiro contato com o crime. Começou com furtos e logo estava no tráfico.

EDUCAÇÃO
Segundo o promotor, além da família, outro sistema de freio à entrada de crianças na atividade criminosa é a escola, que sofre com a evasão de alunos e é pouco atrativa. De acordo com a pesquisa, apenas 57% dos adolescentes infratores estudam. "Mesmo que o jovem esteja na escola, é preciso entender também qual o grau de instrução que está tendo", diz o promotor.
A falta de interesse foi citada por 38% dos jovens que abandonaram as aulas. Esse dado é confirmado pela experiência de Cafuzo. "Fiz até a 8ª série [atual 9º ano]. Mas eu ia só para merendar, jogar bola, namorar e conversar com os amigos. A aula sempre foi muito desinteressante para mim."
Para Del-Campo, são necessárias políticas públicas para evitar que os jovens entrem no crime. "Educação, prática esportiva, aulas culturais, cada um desses elementos serve como uma base de códigos para que o jovem saiba como se portar em sociedade."
Cafuzo conta que seu "código de conduta" só chegou com a descoberta do significado do rap, durante sua internação na Fundação Casa. "O rap foi o que me salvou, foi os meus livros de história. O rap me ensinou que o crime era a nossa realidade, mas a gente não poderia aceitar aquilo como a nossa única saída", diz ele.


AUSÊNCIA
Especialistas ouvidos pela Folha afirmam que a derrocada da vida de um adolescente –a ponto de levá-lo para o crime– começa quando, ainda criança, ele perde os vínculos positivos e passa a sofrer privação emocional. Os vínculos positivos não precisam ser necessariamente com as figuras paterna e materna, mas eles são absolutamente necessários.
"Precisa haver esses vínculos. Seja com o pai, seja com a mãe, com o professor, amigo. Ou os vínculos serão feitos com indivíduos ligados à delinquência", diz o professor Sérgio Kodato, coordenador do Observatório da Violência e Práticas Exemplares da USP Ribeirão Preto.
Ele elogia os programas existentes nos EUA que colocam uma espécie de padrinho para acompanhar menores infratores. "É um cara que vai levá-lo para casa, vai estabelecer um vínculo. Vai arrumar uma atividade ou um emprego, acompanhá-lo na escola."

O professor de criminologia clínica da Faculdade de Direito da USP, Alvino Augusto de Sá, também considera nociva a forma como a sociedade –incluindo a Justiça– trata os infratores. "Todo mundo só o enxerga como inimigo, como bandido, e ele acaba necessariamente se enxergando como inimigo."