CONTA-SE QUE CERTA VEZ o engenheiro Leonel Brizola teria levado o metalúrgico Lula ao túmulo de Getúlio Vargas em São Borja (RS). Lá chegando, o gaúcho pôs-se a conversar com o ex-presidente. Depois de algumas palavras introdutórias, apresentou o líder do PT ao homem que liderou a Revolução de 1930: “Doutor Getúlio, este é o Lula”, disse, ou algo parecido. Em seguida, pediu que Lula cumprimentasse o morto. Não se sabe a reação do petista.
Será que algum dos personagens do encontro pressentiu que, naquela hora, estavam sendo reatados fios interrompidos da história brasileira? Desconfio que não.
Os tempos eram de furiosa desmontagem neoliberal da herança populista dos anos 1940/50. Mesmo aliados, em 1998 PT e PDT -praticamente tudo o que restava de esquerda eleitoralmente relevante- perderiam para Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno. O consulado tucano parecia destinado a durar pelo menos 20 anos e trazer em definitivo o neoliberalismo para o Brasil.
Foi por uma brecha imprevista, aberta pelo aumento do desemprego no segundo mandato de FHC, que Lula encontrou o caminho para a Presidência da República. Para aproveitá-la, fez substanciais concessões ao capital, pois a ameaça de radicalização teria afastado o eleitorado de baixíssima renda, o qual deseja que as mudanças se deem sem ameaça à ordem.
Apesar da pacificação conquistada com a “Carta ao Povo Brasileiro” ter sido suficiente para vencer, o subproletariado não aderiu em bloco. Havia mais apoio entre os que tinham renda familiar acima de cinco salários mínimos do que entre os que ganhavam menos do que isso, como, aliás, sempre acontecera desde 1989. Ainda que as diferenças pudessem ser pequenas, elas expressavam a persistente desconfiança do “povão” em relação ao radicalismo do PT.
Depois de 2002, tudo iria mudar. A vitória levaria ao poder talvez o mais varguista dos sucessores do dr. Getúlio. Não em aspectos superficiais, pois nestes são expressivas as diferenças entre o latifundiário do Sul e o retirante do Nordeste. Tampouco no sentido de arbitrar, desde o alto, o interesse de inúmeras frações de classe, fazendo um governo que atende do banqueiro ao morador de rua. Dadas as condições, todos os presidentes tentam o mesmo milagre.
O que há de especificamente varguista é a ligação com setores populares antes desarticulados. Ao constituir, desde o alto, o povo em ator político, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aos pobres que Getúlio encarnou.
Mas em 1º de janeiro de 2003 ninguém poderia prever o enredo urdido pela história. Para manter em calma a burguesia, o mandato inicial de Lula, como se recorda, foi marcado pela condução conservadora nos três principais itens da macroeconomia: altos superavits primários, juros elevados e câmbio flutuante. Na aparência, o governo seguia o rumo de FHC e seria levado à impopularidade pelas mesmas boas razões.
De fato, 2003 foi um ano recessivo e causou desconforto nos setores progressistas. Ao final, parte da esquerda deixou o PT para formar o PSOL. Mesmo com a retomada econômica no horizonte de 2004, Brizola deve ter morrido em desacordo com Lula, por ter transigido com o adversário.
Ocorre que, de maneira discreta, outro tripé de medidas punha em marcha um aumento do consumo popular, na contramão da ortodoxia. No final de 2003, dois programas, aparentemente marginais, foram lançados sem estardalhaço: o Bolsa Família e o crédito consignado. Um era visto como mera junção das iniciativas de FHC. O segundo, como paliativo para os altíssimos juros praticados pelo Banco Central.
Em 2004, o salário mínimo começa a se recuperar, movimento acelerado em 2005. Comendo o mingau pela borda, os três aportes juntos começaram a surtir um efeito tão poderoso quanto subestimado: o mercado interno de massa se mexia, apesar do conservadorismo macroeconômico.
Nas pequenas localidades do interior nordestino, na vasta região amazônica, nos lugares onde a aposentadoria representava o único meio de vida, havia um verdadeiro espetáculo de crescimento, o qual passava despercebido para os “formadores de opinião”.
Quando sobrevém a tempestade do “mensalão” em 2005 -e, despertado do sono eterno pela reedição do cerco midiático de que fora vítima meio século antes no Catete, o espectro do dr. Getúlio começa a rondar o Planalto-, já estavam dadas as condições para o passo decisivo.
Em 3 de agosto -sempre agosto-, em Garanhuns (PE), perante milhares de camponeses pobres da região em que nascera, Lula desafiou os que lhe moviam a guerra de notícias: “Se eu for [candidato], com ódio ou sem ódio, eles vão ter que me engolir outra vez”.
Até então, a ligação entre Lula e os setores populares era virtual. Chegara ao topo cavalgando uma onda de insatisfação puxada pela classe média. Optou por não confrontar os donos do dinheiro. Perdeu parte da esquerda. Na margem, acionou mecanismos quase invisíveis de ajuda aos mais necessitados, cujo efeito ninguém conhecia bem.
Foi só então que, empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua base se encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo que identificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto.
Os setores mais sensíveis da oposição perceberam que fora dada a ignição a uma fagulha de alta potência e decidiram recuar. A hipótese de impedimento foi arquivada, para decepção dos que não haviam entendido que placas tectônicas do Brasil profundo estavam em movimento.
Em 25 de agosto, um dia depois do aniversário do suicídio de Vargas, Lula podia declarar perante o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social que a página fora virada: “Nem farei o que fez o Getúlio Vargas, nem farei o que fez o Jânio Quadros, nem farei o que fez o João Goulart. O meu comportamento será o comportamento que teve o Juscelino Kubitschek: paciência, paciência e paciência”. Uma onda vinda de baixo sustentava a bonomia presidencial.
O Lula que emerge nos braços do povo, depois da crise, depende menos do beneplácito do capital. Daí a entrada de Dilma Rousseff e Guido Mantega em postos estratégicos, o que mudou aspectos relevantes da política macroeconômica. Os investimentos públicos, contidos por uma execução orçamentária contracionista, foram descongelados no final de 2005. O salário mínimo tem um aumento real de 14% em 2006.
Para o público informado, a constatação do que ocorrera ainda demoraria a chegar. Foi preciso atingir o segundo turno de 2006 para que ficasse claro que o povo tinha tomado partido, ainda que em certos ambientes de classe média “ninguém” votasse em Lula.
A distribuição dos votos por renda mostra a intensa polarização social por ocasião do pleito de 2006. Pela primeira vez, o andar de baixo tinha fechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define o realinhamento iniciado quatro anos antes.
Embora, do ponto de vista quantitativo, a mudança relevante tenha se dado em 2002, o que define o período é o duplo movimento de afastamento da classe média e aproximação dos mais pobres. Por isso, o mais correto é pensar que o realinhamento começa em 2002, mas só adquire a feição definitiva em 2006. Como, por sinal, aconteceu com Roosevelt entre 1932 e 1936.
Assentado sobre uma correlação de forças com menor pendência para o capital, o segundo mandato permitirá a Lula maior desenvoltura. Com o lançamento do PAC, fruto de um orçamento menos engessado, aumentam as obras públicas, as quais vão absorver mão de obra, além de induzir ao investimento privado
Em 2007, foi gerado 1,6 milhão de empregos, 30% a mais do que no ano anterior. A recuperação do salário mínimo é acelerada, com aumento real de 31% de 2007 a 2010, contra 19% no primeiro mandato, conforme estimativa de um dos diretores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)2. A geração de emprego e renda explica os 70% de aprovação do governo desde então.
Nem mesmo a derrubada da CPMF, com a qual a burguesia mostrou os dentes no final de 2007, reduziu o ritmo dos projetos governamentais. A transferência de renda continuou a crescer. Foi só ao encontrar a parede do tsunami financeiro, no último trimestre de 2008, que se interrompeu o ciclo ascendente de produção e consumo. Teria chegado, então, segundo alguns, a hora da verdade. Com as exportações em baixa, o lulismo iria definhar.
Mas o lulismo já contava com um mercado interno de massa ativado, capaz de contrabalançar o impacto da crise no comércio exterior. A ideia, difundida pelo presidente, de que a população podia comprar sem medo de quebrar, ajudou a conter o que poderia ser um choque recessivo e a relançar a economia em tempo curto e velocidade alta.
Além da desoneração fiscal estratégica, como a do IPI sobre os automóveis e os eletrodomésticos da linha branca, o papel dos bancos públicos -em particular o do BNDES- na sustentação das empresas aumentou a capacidade do Estado para conduzir a economia. Numa manobra que lembra a de Vargas na Segunda Guerra, Lula utilizou a situação externa para impulsionar a produção local.
Surge uma camada de empresários -Eike Batista parece ser figura emblemática, como notava dias atrás um economista-, dispostos a seguir as orientações do governo. A principal delas é puxar o crescimento por meio de grandes obras, como as de Itaboraí -o novel polo petroquímico no Estado do Rio-, as de Suape (PE) e de Belo Monte, na Amazônia. Cada uma delas alavancará regiões inteiras.
Por fim, a aliança entre a burguesia e o povo, relíquia de tempos passados que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializa diante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixe mentir.
A candidatura Dilma representa o arco que o lulismo construiu. A ex-ministra, por sua biografia, é talhada para levar adiante um projeto nacional pluriclassista. O fato de ter sido do PDT até pouco tempo atrás não é casual. A mãe do PAC tem uma visão dos setores estratégicos em que a burguesia terá que investir, com o BNDES.
O povo lulista, que deseja distribuição da renda sem radicalização política, já dá sinais de que o alinhamento fechado em 2006 está em vigor. Em duas semanas de propaganda eleitoral na TV, Dilma subiu 9 pontos percentuais e Serra caiu 5. À medida que os mais pobres adquirem a informação de que ela é a candidata de Lula, o perfil do seu eleitorado se aproxima do que foi o de Lula em 2006. Ou seja, o voto em Dilma cresce conforme cai a renda, a escolaridade e a prosperidade regional.
A classe média tradicional, em que pese aprovar o governo, continuará a votar na oposição, como demonstram a dianteira de Serra em Curitiba e o virtual empate em São Paulo, municípios em que o peso numérico das camadas intermediárias é significativo.
Parte delas, sobretudo entre os jovens universitários, deverá optar por Marina Silva. Isso explica por que os que têm renda familiar mensal acima de cinco salários mínimos dão 12 pontos percentuais de vantagem para a soma de Serra e Marina sobre Dilma na pesquisa Datafolha concluída em 3/9.
O problema da oposição é que esse segmento reúne apenas 14% do eleitorado, de acordo com a amostra utilizada pelo Datafolha, enquanto os mais pobres (até dois salários mínimos de renda familiar mensal) são 48% do eleitorado. Nesse segmento, Dilma possui uma diferença de 22 pontos percentuais sobre Serra e Marina somados! Se vier a ganhar no primeiro turno, será graças ao apoio, sobretudo, dos eleitores de baixíssima renda, como ocorreu com Lula na eleição passada.
A feição popular da provável vitória de Dilma confirma, assim, a hipótese que sugerimos no ano passado a respeito da novidade que emergiu em 2006. Se estivermos certos, por um bom tempo o PSDB precisará aprender a falar a linguagem do lulismo para ter chances eleitorais. Não se trata de mexicanização, mas de realinhamento, o qual significa menos a vitória reiterada de um mesmo grupo e mais a definição de uma agenda que decorre do vínculo entre certas camadas e partidos ou candidatos.
Quando um governo põe em marcha mecanismos de ascensão social como os que se deram no New Deal, e como estamos a assistir hoje no Brasil, determina o andamento da política por um longo período. Num primeiro momento, trata-se da adesão dos setores beneficiados aos partidos envolvidos na mudança -o Partido Democrata nos EUA, o PT no Brasil.
Com o passar do tempo e as oscilações da conjuntura, os aderentes menos entusiastas podem votar em outro partido, mesmo sem romper o alinhamento inicial. Foi o que aconteceu com as vitórias do republicano Eisenhower (1952 e 1956) e dos democratas Kennedy (1960) e Johnson (1964).
Mas para isso a oposição não pode ser extremada, como bem o percebeu a hábil Marina Silva. Até certa altura da sua campanha, José Serra igualmente trilhou esse caminho. Foi a fase em que propôs cortar juros e duplicar a abrangência do Bolsa Família.
Depois, tragado pela lógica do escândalo, retornou ao caminho udenista da denúncia moral, que só garante os votos de classe média -o que, no Brasil, não ganha eleição. Convém lembrar que no ciclo dominado pelo alinhamento varguista, a UDN só conseguiu vencer com um candidato: Jânio Quadros, que falava a linguagem populista. Fora disso, resta o golpe, sombra da qual estamos livres.
Qual será a duração do ciclo aberto em 2002, completado em 2006, e, aparentemente, a ser confirmado em 2010? O realinhamento abrange, por definição, um período longo. O último que vivemos, dominado pelo oposicionismo do MDB/PMDB, durou 12 anos (1974-86) e foi sepultado, quem sabe antes do tempo, pelo fracasso em controlar a inflação. A resposta para o atual momento também deve contemplar a economia.
Por isso, as condições de manter, pelo menos, o ritmo de crescimento médio alcançado no segundo mandato de Lula, algo como 4,5% de elevação anual do PIB, estarão no centro das preocupações do novo presidente. Sem ele, as premissas do lulismo ficam ameaçadas. Recados criptografados sobre a necessidade de reduzir a rapidez do crescimento e de fazer um ajuste fiscal duro já apareceram na imprensa, dirigidos a Dilma, provável vencedora.
O capital financeiro -apelidado na mídia de “os mercados”- vai lhe cobrar o tradicional pedágio de quem ainda não “provou” ser confiável. Caso os reclamos de pisar no freio não sejam atendidos, sempre haverá o recurso de o BC -cuja direção deverá continuar com alguém como Henrique Meirelles, senão o próprio- aumentar os juros. O aumento real do salário mínimo no primeiro ano de governo, que dependerá da presidente, pois o PIB ficou estagnado em 2009, será outro teste relevante.
Convém notar que, no segundo mandato de Lula, ainda que de modo relutante, o BC foi obrigado a trabalhar com juros mais baixos. Mas o cabo de guerra será reiniciado no dia 3 de janeiro de 2011. Com os jogadores em posse de um estoque de fichas renovados pela eleição, uns apostarão em uma recuperação do espaço perdido, outros numa aceleração do caminho trilhado no segundo mandato.
O PMDB, elevado à posição de sócio importante da vitória, atribuiu-se, na campanha, o papel de interlocutor com o empresariado. O PT, possivelmente fortalecido por uma bancada maior, deverá, pela lógica, fazer-lhe o contraponto do ângulo popular. A escolha dos presidentes da Câmara e do Senado, em fevereiro, servirá de termômetro para o balanço das respectivas forças.
O futuro do lulismo dependerá de continuar incorporando, com salários melhores, os pobres ao mundo do trabalho formal. Em torno desse ponto é que se darão os principais conflitos e se definirá a extensão do ciclo. Alguns analistas da oposição alertam para a proximidade de um índice de emprego que começará a encarecer a mão de obra e gerar inflação. Como mostra Stiglitz,3 é a conversa habitual dos conservadores para brecar a expansão econômica.
Por fim, não se deve esquecer que uma palavra decisiva sobre esses embates virá de São Bernardo, onde residirá o ex-presidente, bem mais perto da capital do que foi, no passado, São Borja.
Aguardam-se os conselhos de Vargas e Brizola, dos quais poderemos tomar conhecimento naquelas mensagens psicografadas por Elio Gaspari.
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Notas
1. Ver André Singer. “Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo”, “Novos Estudos”, 85, nov 2009. Link para o artigo em folha.com/ilustríssima
2. Ver João Sicsú. “Dois Projetos em Disputa”. “Teoria e Debate”, 88, mai/jun 2010.
3. Ver Joseph Stiglitz, “Os Exuberantes Anos 90″, Companhia das Letras, 2003.
Ao constituir, desde o alto, o povo em ator político, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aos pobres que Getúlio encarnou. Empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua base se encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo que identificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto
Em 2006, pela primeira vez, o andar de baixo tinha fechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define o realinhamento iniciado quatro anos antes
A aliança entre a burguesia e o povo, que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializa diante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixe mentir
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Razões e desrazões do lulismoO lulismo seria um continuador do varguismo? Sim, mas pelo que Getúlio tinha de pior, segundo Maria Sylvia Carvalho Franco e Sergio Fausto, que fazem um contraponto ao artigo de André Singer "A história e seus ardis", publicado na Ilustríssima, em 19/9
De casas, pastores e lobos
RESUMO Lula valeu-se da herança varguista do paternalismo para constituir seu governo e sua popularidade, calçada na cultura da carência dos brasileiros, em violações de direitos e no marketing político. O alardeado êxito comercial leva a escolhas eleitorais sem racionalidade, que ignoram fragilidades econômicas e valores cívicos.
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCOENTRE AS IMAGENS ARCAICAS do poder político estão as do pastor e do pai. Esta última figura, o presidente Lula reclamou explicitamente para si. Não bastasse a evocação do paternalismo, as mazelas que o acompanham fazem-se mais e mais visíveis. O cerne dessa ordem está, justamente, em transpor a casa -moradia da família grande, com pais, filhos, parentes, clientela, compadres, afilhados e companheiros- para o palácio, com seus membros convertidos em ministros, deputados e senadores, agregados, sindicalistas e executivos de empresas oficiais.
Emblemáticos desse regime são os acontecimentos na Casa Civil deste governo, tornada gabinete pessoal de José Dirceu e da ministra demissionária. Ambos convenientemente descartados. Lula de nada sabia, esteve cego, surdo, calado; Dilma resguarda-se dos eventuais dolos de seu factótum, simples "assessora".
A gratidão aos acólitos, nula nesses protagonistas, é virtude privada e pouco interessa em política: importantes são os princípios que fundam o Estado e o espírito da magistratura, como a prudência e o respeito à legalidade. Nesse campo ético, o governante obriga-se a responder por seus próprios atos e os de seus adjuntos. O avesso dessa máxima orienta nossos dirigentes. Em atos e palavras, a disciplina necessária aos negócios públicos é subvertida com farsas tramadas para eludir responsabilidades.
Daí é um passo converter a economia doméstica em economia política, o interesse privado em fins coletivos, a dominação pessoal em benefício para os pobres, a pura mentira em razão de Estado. O crime de violação de sigilos constitucionalmente garantidos, como as declarações de rendimentos, transforma-se em ato banal para o ministro da Fazenda. As vítimas desse atentado convertem-se em réus, a imprensa que divulga os feitos transforma-se em golpista que os maquina.
A esse quadro de condutas e valores invertidos Dilma pertence: escolheu integrá-lo ao sagrar-se "mãe", como seu padrinho diz-se "pai" dos brasileiros. À sombra do arcaico paternalismo, acomodou-se um esmaecido perfil de mulher moderna, da jovem ex-resistente contra a ditadura, da universitária e profissional habilitada.
É confrangedor ver a espinha humana vergar às técnicas de controle político: a curvatura vai da aparência física à indumentária, ao discurso, à identidade, perdida na aliança com personagens cujo estigma a candidata quer afastar de si. José Dirceu faz sua campanha Brasil afora, Antonio Palocci -derrubado no episódio da violação, sem mais, de um preceito constitucional- a avaliza junto aos empresários, temerosos da "guerrilheira", mas desatentos à ameaça que representa, a eles como a toda a cidadania, a possível devassa, sem ordem judicial, na vida econômica de qualquer pessoa. Palocci é enaltecido em jantar, com direito a fotografia risonha e cordial, impressa em jornais, comemorando a "classe média" alardeada na propaganda e erguida ao paraíso mercantil.
Há quem afirme que essa "classe média, pela primeira vez neste país, compra e vota com racionalidade". A associação é significativa: compra e vota. Racionalidade, nesse exíguo espaço de pensamento, inexiste: se a minguada Bolsa Família -suposto arcano da prosperidade- permite ao pobre comer, a racionalidade vai da mão para a boca (dizia o velho Marx).
Esse critério de voto realça outro arquétipo do mando político, o pastoreio, reativado por Lula e Dilma ao prometerem "cuidar" dos brasileiros. Filhos são singulares, não compõem um rebanho de animais dóceis, tangidos pelo pastor. Este "trata" de sua manada: a alimenta, supervisiona e preside seus cruzamentos, reproduzindo-a e engordando-a para o corte. Se o pastor e seus ajudantes fornecem comida, dia virá em que, por sua vez, comerão o redil, convertendo-se em lobos, saciando-se com o poder garantido pelos votos encurralados.
É esse viés obsoleto que Lula soube expandir, distorcendo o regime democrático. Não raro, o pastor comunga, com sua confraria, a mesma origem e formação, o que o torna conhecedor das almas que visa aliciar e bom juiz das palavras que as atingirão. Mas, neste caso, Lula não é só um ex-partícipe do rebanho e do sertão que abandonou, ao passar para a classe dominante com suas benesses: ele é simbólico dessa cultura de carência e sabe explorá-la, apoiado em suas falanges de marqueteiros.
A clássica técnica de dominação -medo e esperança-, entranhada na crença em entidades salvadoras, é a energia que nutre o fantástico aplauso ao governo: o temor de perder o recebido, conjugado à expectativa de conservá-lo e à gratidão pela dádiva concedida, não deixa nada contido "sub ordine rationis", tudo é carreado para a superstição.
O amálgama -fé e graça- impulsiona o calamitoso circuito inverso, rumo ao retrocesso, de nossas instituições políticas. Em entrevista à Folha, Maria Celina D'Araujo cotejou o presente "pai do povo" com Getúlio Vargas, destacando decisiva diferença entre ambos: Vargas formou uma força de trabalho industrial, urbana, organizada. Interferiu, portanto -muitas vezes para o mal, com implacável ditadura-, nas diretrizes da organização econômica e social do país. Sua outorga de direitos ao trabalhador não gerou uma consciência autônoma, mas não explorou o puro assistencialismo.
Lula projetou a cultura política para atrás de Vargas, revertendo-a no mínimo à República Velha (1889-1930), com a sua tralha de favores, hoje reforçada pela ampliação capitalista e pelas técnicas de controle sociocultural, monitorando as eleições desde as imagens dos candidatos até o mais recôndito sufrágio. De Vargas, retomou o domínio do sindicato e transfez o peleguismo em arma para o aparelhamento do Estado.
Voltando ao pastor: se o rebanho prospera, alimentado pelos milhões aspergidos na economia, o milagre alimenta o comércio especializado em vender para pobres, para a "classe média" que teria alterado, reza a propaganda, a estrutura social do país. Mas, de fato, os pobres continuam pobres, não raro adquirindo produtos inferiores e precários (por isto mesmo reiterativos das compras), "made in China" ou aqui produzidos por imigrantes ilegais na situação de escravos.
Enquanto isto, o comércio de altíssimo luxo multiplica-se nos centros ricos. A pletora de importações -da quinquilharia aos carros preciosos, todos produtos acabados- anuncia a desindustrialização e compromete as reservas cambiais (lembremos de Dutra). Insistindo no plano comercial -a grande arma publicitária-, indaga-se: que é da menor desigualdade social? Até quando se afastará a inadimplência (Serasa, agosto 2010)?
E o setor produtivo, com a perda bilionária da exportação de bens industrializados, face à de matérias-primas, com a pauta de exportações regredindo ao nível de l978, resultando em queda no saldo comercial, rombo nas contas externas e maior dependência de capitais a curto prazo?
Enfim, menos empregos e menos riqueza, somadas a outras consequências, como a falta de infraestrutura e a evasão empresarial (Associação do Comércio Exterior do Brasil). A economia vai bem? O ministro da Fazenda inverte sua tendência funesta e afirma que a exportação majoritária de commodities não é problema.
Impossível ser contra mitigar a pobreza material, mas a vida do espírito não deve continuar miserável. Que livre-arbítrio pode emergir nesse mundo avesso à consciência crítica? Esta é outra arma brandida pela sofística própria à propaganda. Quanto menos informados os eleitores (a não ser no interesse da facção que sustenta a catequese, como o merchandising de seus prosélitos), melhor para os marqueteiros, exímios em desvirtuar os valores democráticos para alavancar seus mecenas. Essa inversão ética bloqueia compreensões racionais: há quem fique perplexo diante da sobrevivência de Lula através dos escândalos que o atingem, razões sobejas para sua rejeição. Mas a solércia o leva a abandonar os náufragos, convertendo a ingratidão pessoal em decoro cívico, punitivo da prevaricação. Os subterfúgios que implementou fornecem-lhe a escapatória: nada acontece porque o chamado "cenário" onde ele habita funda-se na desrazão instalada ao longo das camadas sociais, tornando-as crédulas em maravilhas. Todas as aparências servem à prestidigitação publicitária: o mundo efetivo é escondido, as deformações de seus aspectos são meticulosamente produzidas, mitos fabricam os candidatos, engrandecendo suas proporções.
O perigo, nessa engrenagem de seres vivos, é que estes podem escapar ao planejado: a irracionalidade que a sustenta pode ameaçá-la, pelo açodamento e por certezas impensadas, como em suas crises periódicas.
De todo modo, enquanto a falange de marqueteiros a serviço de Lula, infantaria pesada, faz razia no território político e colhe seu butim, a desordenada oposição custou a perceber que caíra, distraída, em um campo de batalha.
"Lula não é só um ex-partícipe do sertão que abandonou, ao passar para a classe dominante: ele é simbólico dessa cultura de carência e sabe explorá-la"
"Impossível ser contra mitigar a pobreza, mas a vida do espírito não deve continuar miserável. Que livre-arbítrio pode emergir nesse mundo avesso à consciência crítica?"