O tema da redução da maioridade penal é recorrente, desde que há 27 anos, o Artigo 228 da Constituição, cravou em 18 anos a idade mínima para a imputabilidade penal. Mas, nas últimas semanas, graças ao avanço de um projeto neste sentido, o tema voltou às manchetes e aos “trendtopics”. E é bom que este tema esteja na pauta do dia. A vida dos adolescentes e a segurança da sociedade merecem atenção.
Os lados estão claramente
definidos. Os contrários à redução defendem a manutenção da constituição e da Lei
nº 8.069/90 (o Estatuto da Criança e do Adolescente, E.C.A.). Eles veem a
alteração como retrocesso nos Direitos dos Adolescentes, principalmente aos
mais pobres. Creem que a redução seria mais uma manifestação de injustiça
social. Os favoráveis creem que a lei precisa ser atualizada e desfiam muitos
argumentos, que podem ser resumidos em três afirmações principais: atualmente os
adolescentes são impunes; a imputabilidade reduz a criminalidade e; um
adolescente de 16 anos tem consciência do que faz.
Vamos ao primeiro argumento: os
adolescentes são impunes. Aqui há uma confusão entre inimputabilidade e
impunidade. Adolescentes são inimputáveis penalmente. Mas, ao contrário do
senso comum, eles são punidos mais vezes e com mais rigor do que adultos. O E.C.A.
dá o poder ao Estado de restringir a liberdade, que é um eufemismo para
encarcerar, de um adolescente por até 36 meses. Isto sem um rito processual cuidadoso
como o aplicado a adultos, sem um julgamento, sem direito à progressão de pena
e, muitas vezes, sem contraditório. Para efeito de comparação, apenas 16% das
pessoas condenadas criminalmente no Brasil fica mais de 36 meses presa. No caso
dos adolescentes, 28% das sentenças determinam a internação máxima; mesmo que menos de 20% dos atos infracionais correspondam a crimes violentos. Além de
serem comumente punidos com mais rigor, os processos instruídos pela polícia
contra adolescentes são muito mais débeis e ainda assim recebidos do que
os dos adultos. Um levantamento, feito na Justiça paulista, constatou que das
denúncias apresentadas contra adolescentes, apenas 26% têm perícias técnicas e 68%
nenhum ou apenas um depoimento arrolado. Enquanto, as mesmas denúncias contra
adultos, 61% têm perícias e 78% contam com mais de um depoimento corroborativo.
O baixo rigor exigido nas denúncias contra adolescentes, fazem deles os sujeitos ideais para a autoridade policial aumentar seu índice de sucesso. Resumo,
adolescentes são facilmente condenados no Brasil e a penas maiores do que seus
pares adultos.
A segunda crença é a de que a imputabilidade
previne o crime. Teoria perfeita, talvez na Noruega. Mas, não se
sustenta nos dados daqui. No Brasil, mesmo com a imputabilidade, o crime compensa
para os adultos. Um exemplo: por ano, são mais de 50 mil mortes no país. E os
casos em que os crimes são solucionados não chegam sequer a 8%. E meros 5,2%
chegam a uma sentença. No final, somente 4% dos homicídios acarreará prisão
para seus perpetradores. Nos outros crimes a situação não é muito diferente. Em
2014, o Brasil tinha mais de 600 mil mandatos de prisão não cumpridos. Em parte
até porque faltam, segundo o próprio Ministério da Justiça, 200 mil vagas no
sistema prisional brasileiro. O sistema atual estimula a impunidade dos que adultos e não faria diferente com os adolescentes. É ilógico defender a extensão para os adolescentes de um Sistema Prisional falido, cujo caráter vingativo só piora a segurança pública.
O terceiro axioma: o da consciência
dos atos. Um adolescente de 16 anos teria idade suficiente para saber o que
faz. Provavelmente tenha mesmo. Porém, a fixação da idade para o envio a um
sistema prisional especial (como o atualmente imposto aos adolescentes) não se justifica
primariamente na consciência do ato. A razão é definir uma idade até a qual a
sociedade crê que seja mais importante recuperar do que punir. O principal objetivo do sistema prisional é a punição, uma retribuição do mal. Esta compensaria o erro, reequilibraria a balança da justiça. A pena é um tipo de pagamento
(“olho por olho”; ou “olho por 12 anos de prisão”) no sistema prisional adulto. Na prática, a recuperação é um produto secundário. Se
acontecer, melhor mas não é o objetivo. Mas, um sistema prisional juvenil (este
é o nome real das “fundações” onde internamos os adolescentes) se baseia justamente
na inversão do primado da punição. A recuperação social passa a ser o principal
objetivo e não a compensação punitiva. Os sistemas prisionais diferenciados para
adolescentes e jovens (existentes em todos os 20 primeiros ocupantes da lista
do IDH) não fazem isto por conta da bondade da sociedade, mas por um cálculo
simples: quanto mais jovem, mais possível é a correção de comportamentos + quanto
mais jovem, mais tempo para um recuperado “reparar” a sociedade, através de uma
vida produtiva para si e para sua comunidade, depois que terminar o tempo de prisão.
O sistema diferenciado não é baseado em consciência do ato, mas em na busca do melhor para a sociedade, uma racionalidade econômico-social.
Tratados estes três axiomas dos
defensores da redução, precisamos elevar o nível do debate. Mesmo os defensores
da manutenção da idade penal reconhecem que o atual sistema real (não o da
letra da lei) não funciona nem para a sociedade, nem para os adolescentes. Ele é baseado em uma dupla estratégia orgânica
(não escrita): Abusar e/ou Exterminar.
A estratégia do Abuso é
construída fora e dentro do interior do sistema de “medidas socioeducativas”. Tratados
como bandidos em potencial, adolescentes pobres são estigmatizados, perseguidos,
calados e vilipendiados cotidianamente. Ao invés de punir a sociedade que nega
os direitos, são os adolescentes os punidos. E, quando acusados de crimes, entram em um
caminho com raro retorno. Em São Paulo (desconheço se há dados para o restante
do país), 6 adolescentes em cada 10 egressos do “sistema prisional juvenil” estarão às voltas com o sistema penal adulto, depois de chegar à maioridade. Contados nos "4" que “escapam” de voltar à cadeia,
estão os que morrem antes (1 em cada 10). E alguns poucos que, por uma confluência
de fatores positivos que podemos chamar de “milagre”, conseguem superar não só as
condições (psicológicas, familiares, econômicas, etc.) e preconceitos (geográficos, raciais, etc.) que os levaram a serem presos, mas também as injustiças, o
abandono, os estupros (que vitimam 38% dos internos) e demais violências sofridas
na penitenciária juvenil. Política
pública não pode depender de “milagre”. O atual sistema não funciona. Mesmo que
na letra do ECA ele seja inspirado nos Direitos dos Adolescentes, e tenha um nome bonito de “medidas
socioeducativas”, ele é um sistema penal caro, cruel e ineficaz.
A Estratégia do Extermínio é
evidenciada na vergonhosa epidemia de homicídios de adolescentes. A cada ano, quase 10.000 adolescentes são assassinados. Os dados para comprovar o viés da
violência contra adolescentes são abundantes. A polícia brasileira, a que mais
mata no mundo, é ainda mais violenta com os adolescentes. 42% dos homicídios de
adolescentes são cometidos pelo próprio Estado. Ser adolescente é ter mais chance
de ser morto pela polícia.
Uma equivocada e indesejada redução
da maioridade penal seria inócua para a sociedade, porque não a faria mais
segura. Por outro lado, a manutenção da idade penal, sem mudanças profundas no
sistema tanto repressor quanto penal, não impedirá que os adolescentes continuem
a ser abusados e exterminados.
Assim, muito além do debate 16 X
18, precisamos acelerar iniciativas como: o Projeto de Lei 4471/12 (que cria
regras rigorosas para a apuração de mortes e lesões corporais decorrentes da
ação de agentes do Estado, como policiais), o aperfeiçoamento do rito
processual para garantir tratamento justo aos adolescentes e a reforma completa
do sistema de medidas sócio educativas, hoje um horrendo sistema prisional
juvenil (para transforma-lo em um instrumento de recuperação).
O debate é bom, por isto é hora
de movê-lo para onde o problema está: na necessidade de promover segurança
com justiça. Parafraseando um slogan politico: Sociedade Justa é Sociedade Segura.
Texto originalmente Publicado no Boletim "O São Francisco", da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1/4/2015.
Fontes:
1.
Mapa da Violência: Os Jovens do Brasil, SGPR, 2014.
2.
Justiça Paulista, Adolescência e Juventude, NEV-USP,
SEADE, 2013.
3.
Conselho Nacional de Justiça, 2013.
4.
Anuário de Segurança Pública, Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, 2014.