segunda-feira, 15 de novembro de 2010

As 500 Maiores Discriminadoras



Pesquisa divulgada pelo Instituto Ethos e Ibope Inteligência mostra o imenso abismo entre a representação demográfica e o quadro de chefia nas 500 maiores empresas do país.


A participação das mulheres e dos negros segue muito menor do que a mínima esperada. Pouca coisa mudou em relação ao último levantamento, de 2007.



  • Nos postos de diretoria a participação feminina é de  13,7% (11,5%, em 2007)
  • No nível de gerência, se 17,4% dos postos eram ocupados por negros (pretos e pardos) há três anos, hoje são 25,6% entre a amostra total, de 13 mil pessoas.
  • No caso de mulheres negras, elas acumulam os preconceitos. Apenas 6 mulheres negras ocupam cargos de direção nas 500 maiores empresas do país!


O tipo de levantamento e sua ainda pequena série histórica não permitem extrapolar com precisão científica. Mas, como exercício, se a situaçao continuasse a evoluir neste ritmo (projeção mais otimista do que imaginar que o Guarani escapará da série B :-), demoraria cerca de 28 anos para que que as mulheres brasileiras tenham um quadro semelhante ao nórdico (países c/menor brecha de gênero do mundo). Quanto aos negros, no atual ritmo, somente em 2061, eles teriam uma representação próxima à demografíca. 

Pelo jeito, nas 500 maiores empresas brasileiras,  a diversidade continua a viver somente nos bonitos códigos de ética, os elaborados discursos sobre a diversidade e os coloridos relatórios de responsabilidade social.


O texto todo em:



“PERFIL SOCIAL, RACIAL E DE GÊNERO DAS 500 MAIORES EMPRESAS DO BRASIL E SUAS AÇÕES AFIRMATIVAS”

http://www.ibope.com.br/produzindoconhecimento/download/perfil_500_empresas_helio_gastaldi.pdf


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

VIOLENCIA PREOCUPA MAIS AOS LATINOS DO QUE A POBREZA



A violência é a maior preocupação latino-americana segundo um estudo realizado no ano passado e divulgado nesta semana. Em entrevistas realizadas com 10.000 pessoas em 28 cidades de 18 países, a Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO) perguntou sobre democracia, confiança, medo e esperança.


67,5% dos entrevistados listam violência como sua maior preocupação.

Na área de confiança, o latino-americano continua crendo mais nos jornais de TV do que nos líderes religiosos (páreo duro :-)). Os brasileiros são os que mais declaram confiar no que a TV diz. Fé não se discute.

Todo o interessantíssimo estudo



segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Nem Freud explica. Ainda Bem.


Amigos meus passaram a noite de domingo em seus computadores para fazer correlações eleitorais.

Melhor seria terem ido à balada. Todas as tentativas de explicar os votos por renda, escolaridade, IDH, cor não deram em nada digno de nota. As que existem não passam pelo teste do “todos contra mim”. Não se repetem mais do que todas as outras somadas.

Candidatos com menos votos até apresentam correlações. No 1º. Turno, a candidata Maria Silva apresentou um viés muito claro de voto X indicadores sociais. Mas, eleições de 2º. turno já são tradicionalmente refratárias a este tipo de tentativa explicativa. Trata-se de um pleito onde o voto é decidido quase igualmente com base na opção e na rejeição.

Além disto, nesta eleição se aprofundou o fenômeno de descolamento entre indicadores e voto. Ele ainda é percebido nas duas extremidades dos indicadores. Mesmo assim, aparentemente só para renda. Isto é, os muito ricos e os muito pobres divergem profundamente em seus votos. Fora isto, nos casos dos dois candidatos, as demais diferenças forma pífias e não dão base para teses.

Religião, renda, escolaridade, gênero, cor, hábitos de leitura, etc. Nenhum dos indicadores sozinho baseia mais de 8% de viés. E ainda não sustentados, i.e., que não se repetem. Mesmo quando há aparente correlação dentro de um estado, ela não se sustenta na análise nacional. Pessoas com baixa renda votam diferentemente em estados distintos. Pessoas com nível superior em um divergem de seus pares em outro.

O que explica o voto então?  Os indicadores sociais certamente não são neutros na equação da decisão, mas eles não explicam. Eles compõem uma lógica decisória por camadas. Para tristeza dos que crêem em lógicas estruturantes para toda decisão, como se o ser humano fosse determinado a certas escolhas pelo seu contexto, as diferenças de votos parecem ter 3 camadas: familiar, pessoal,  geográfica e estruturante (indicadores).  Famílias votam unidas em 8 de cada 10 casos no Brasil. Pessoas votam como seus amigos mais chegados em 7 de cada 10. Em municípios de até 100.000 habitantes, 68% tiveram comportamentos eleitorais homogêneos. Por fim, há as opções relacionadas às condições.


O complexo na decisão é que estas camadas são sobrepostas e combináveis, e, de acordo com o indivíduo, exercem pesos distintos. O que é a desgraça dos analistas é a fortaleza da Democracia. Eleições com todas suas imperfeições (a principal delas na desigualdade entre candidatos com grandes estruturas/capacidade de arrecadação e os demais) ainda são espaços de opção não controláveis. Por mais que os marqueteiros influenciem, a lógica decisória não é previsível.

Resta a constatação que 99% dos torcedores do Fluminense votaram em Fred porque Washington virou "embaixador da boa-vontade", só conversa com o goleiro adversário.















quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A Corrupção Percebida


A Transparência Internacional divulgou o atualizado Índice Internacional de percepção de Corrupção.



Como o nome diz, reflete o sentimento das pessoas acerca da lisura dos processos públicos e privados. Seria impossível medir a corrupção objetivamente, dentre outros motivos, porque as fontes também são corruptas.


O índice da Transparência tem mais significado de análise local, do que comparativo. Não é possível medir o Chile com a França, por exemplo. Mas, é altamente significativo constatar a evolução dos índices dentro de cada país.


A comparação dos índices com outros fatos também fornece informações. Países que têm trabalhado mais duramente contra a corrupção tendem a aumentar seu índice de percepção da mesma. Parece contraditório, mas é facilmente explicável. Quanto mais se fala no tema, quanto mais ele é exposto, por exemplo, através de grandes investigações e prisões em cadeia nacional (sem trocadilho), mais a corrupção se torna visível.


O índice de percepção é importante também porque antecipa comportamentos. Em sociedades onde as pessoas crêem que haja corrupção, o nível de confiança diminui. Isto gera um custo desconfiança que passa a ser integrado nos modelos de troca, sejam elas econômicas, sejam simbólicas.


Como diria Platão em lagoa com piranha, jacaré nada de costas :-)


Os dados detalhados do índice:


http://www.transparency.org/policy_research/surveys_indices/cpi/2010/results



e o relatório


http://www.transparency.org/content/download/55725/890310

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Mulheres e Conflitos

“Do conflito e crise à renovação: gerações da mudança” é o novo Relatório sobre a Situação da População Mundial 2010 (UNFPA). O texto vincula paz, segurança e desenvolvimento com os direitos e empoderamento das mulheres.


A tese defendida pelos autores é que quando as mulheres têm os mesmos direitos e oportunidades que os homens, elas são mais resilientes a conflitos e desastres e conseguem conduzir os esforços de reconstrução e renovação em suas sociedades, O lançamento do relatório coincide com o décimo aniversário da resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que visa colocar um fim à violência contra mulheres e meninas em conflitos armados e encorajar uma maior participação das mulheres em iniciativas de construção da paz.

O relatório combina histórias e dados. Em uma tendência da ONU: não produzir calhamaços estatísticos mais chatos do que a TV Câmara. Os exemplos são tomados de países que saíram recentemente de conflitos abertos e colocam o tema da recuperação com ênfase em gênero. Em resumo o texto tenta convencer de que conflitos são oportunidades não para reconstruir, mas para construir uma sociedade mais igualitária.

Além de seu tema central, o relatório atualiza os principais dados demográficos e socioeconômicos globais, em uma chuva de dados para deixar qualquer estatístico “mais feliz do que pinto no lixo”, como diria minha avó.

O relatório todo:

A versão em português do Relatório sobre a Situação da População Mundial 2010 do UNFPA está disponível em:


quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Dia Mundial da Estatística



1. "42,7% de todas as estatísticas são feitas na hora." 
2. 33% dos acidentes de trânsito envolvem pessoas embriagadas, portanto 67% estão sóbrias, logo devemos dirigir bêbados que é mais seguro."
3. "A estatística é a arte de nunca ter que dizer que você está errado." –
4. "A estatística é um método sistemático para se ter uma conclusão errada com 95% de confiança."
5. "A loteria é um imposto sobre pessoas que não são bons em Estatística." -
6. "A menor distância entre dois pontos depende de onde eles estão."
7. "A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística."
8. "A probabilidade de cruzar com um conhecido aumenta quando você está com alguém com quem não quer ser visto."
9. "A taxa de natalidade é o dobro da de mortalidade, portanto uma em cada duas pessoas é imortal!"
10. "Acreditamos em Deus, todos os demais devem utilizar dados." -
11. "Alguns usam a estatística como os bêbados usam postes: mais para apoio do que para iluminação."
12. "As estatísticas afirmam que os homens casados vivem mais do que os solteiros. Mas tem um desejo maior de morrer."
13. "As soluções, eu já as possuo há muito tempo. Mas ainda não sei como cheguei a elas." -
14. "Assim como sonhos, estatísticas são uma forma de alcançar um desejo."
15. "Até relógio parado fica certo duas vezes ao dia!"
16. "Dados são muito parecidos com pessoas. Nascem, amadurecem, casam com outros dados, se divorciam e ficam velhos. Só não morrem, precisam ser mortos."
17. "Daria tudo que sei em troca da metade do que ignoro."
18. De cada 10 pessoas, 6 sabem contar e 5 não."
19. "É bom lembrar que a população inteira do universo, com apenas uma insignificante exceção, é composta por 'outros'." - Andrew J. Holmes
20. "É ótimo ser estatístico! Você nunca precisa estar "absolutamente certo" sobre algo, estar "razoavelmente certo" é o suficiente." –
21. "Estatísticas podem ser forjadas para provar qualquer coisa - até mesmo a verdade."
22. "Estatísticas são iguais a biquínis; o que revelam é sugestivo, mas o que elas escondem é essencial. "
23. "Fatos são teimosos, mas estatísticas são flexíveis." - Mark Twain.
24. "Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras descabeladas, e estatísticas."
25. "Hipótese é uma coisa que não é, mas a gente faz de conta que é, pra ver como seria se ela fosse."
26. "Mais vale um estatístico a favor do que um matemático contra!"
27. "Metade das pessoas que você conhece está abaixo da média."
28. "100% dos divórcios começam com o casamento."
29. "O diabo se delicia tanto com estatísticas quanto citando as escrituras."
30. "O esperto só acredita em metade, e o gênio sabe em que metade deve acreditar!
31. "O estatístico é um sujeito que pode morrer afogado ao cruzar um rio com profundidade média de apenas 50 cm." -
32. "Quando a única ferramenta que se tem é um martelo, então todo problema fica parecido com um prego."
33. "Se o estat;istico está com o rabo no forno e a cabeça na geladeira, não se pode dizer que ele está com uma ótima temperatura média."
34. "Sem dados você é apenas outra pessoa com uma opinião."
35. "Você sabia que 87,186145 % de todas as estatísticas dizem ter uma precisão que não se justifica pelo método empregado?"
36. "Todas as constantes são variáveis."
37. "Estatísticas são percentuais da verd..."


terça-feira, 19 de outubro de 2010

ROTA e o país onde ser pobre = criminoso


A ROTA (Ronda Ostensiva do Batalhão Tobias Aguiar) completou 40 anos. Orgulho da PM paulista.

Na festa foram lembrados os 168 soldados mortos desde 1970. Ninguém mencionou as 20804 pessoas mortas por ela.
Quase no mesmo período (1970-2009, com dados do Strategic Foresight Group), o Exército Israelense perdeu 902 soldados e matou 11.804 palestinos.  Ponto para ROTA.
A polícia nos EUA matou quase 3.000 pessoas no mesmo período. Ponto para a ROTA.
Tb nos EUA, 1304 pessoas foram executadas por pena de morte nestes 40 anos. Ponto para a Rota.

Dados de levantamentos feitos até o ano de 2006 (diversos+dados NEV-USP) mostra o perfil dos mortos pela ROTA: 
  • 7% tinha menos de 12 anos.
  • 21% Menos de 18 anos (incluem o dado anterior)
  • 18% deles "até segundo a própria ROTA admite" não estava engajada na troca de tiros (foram mortas por estar no “cenário da ação”)
  • 58% delas sem ficha criminal. 
  • 93% delas com renda inferior a 3 SM’s.
  • 67% era negro..
  • A abordagem autoritária da ROTA fez escola nas PMs do país todo: é marcada pelo direito absoluto do agente policial que investiga, julga e muitas vezes executa a sentença.
    Ela praticamente só se aplica a pobres, jovens/adolescentes. A ROTA diz que não tem medo de bandido, mas tem medo da classe média e de branco. Em uma conta simples, a ROTA matou 1456 negros/pobre/jovem para cada 1 branco/+25aa/>3SM.
    O estilo de policiamento ostensivo é profundamente ineficaz para a redução da criminalidade. Todos os indicadores de violência pioraram profundamente nestes 40 anos.
O que comemorar no aniversário da ROTA?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Dois Milhões de Jovens NEM-NEM e Dois Candidatos NEM-NEM aí

Aumenta a parcela de jovens brasileiros que vive sem estudar ou trabalhar


(com textos de ÉRICA FRAGA + análises próprias)
 
Nem estudando, nem trabalhando. Mais de dois em cada dez jovens brasileiros entre 18 e 20 anos se encontravam nessa espécie de limbo em 2009, à margem da crescente inclusão educacional e laboral registrada no país em anos recentes.

Essa geração "nem-nem" (tradução livre do termo ni-ni, "ni estudian ni trabajan", usado em espanhol) representa uma parcela crescente dos jovens de 18 a 20 anos.

Eram 22,5% dessa faixa etária em 2001 e 24,1% em 2009 (o equivalente a 2,4 milhões de pessoas). Nesse mesmo período, a taxa de desemprego no país recuou de 9,3% para 8,4%.

Os dados são da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e foram levantados pelo pesquisador Naercio Menezes Filho, do Centro de Políticas Públicas do Insper.

Segundo especialistas, essa tendência é resultado de várias causas:
  1. Entre elas, paradoxalmente, o maior aquecimento no mercado de trabalho -que tem acirrado a competição. "Há mais vagas sendo criadas, mas a concorrência também é maior. E esses jovens têm pouca ou nenhuma experiência", diz Menezes. A hipótese é confirmada pelos próprios jovens que fazem parte dos "nem-nem".
  2. À falta de experiência se soma outro problema: a formação educacional precária. "Temos hoje um cenário de jovens com escolaridade crescente mas de péssima qualidade. Nos últimos 15 anos, a política educacional privilegiou o ensino universitário, em detrimento do fundamental e do médio", diz Cláudio Dedecca, professor de economia da Unicamp. Quem recruta jovens faz eco a esse diagnóstico.  A baixa capacidade de produção escrita, de entendimento de texto e competências matemáticas básicas apresentada mesmo em jovens com o ensino médio completo é um fator de exclusão do mercado. Em situação ainda pior está quem nem terminou o ensino médio.
  3. Mas, há jovens em situação oposta. São os NEM-NEM "de boa":-). Aqueles que decidem adiar os planos de trabalhar porque a renda da família engordou com transferências do governo. Em um cruzamento que fiz (usando as médias de renda entre jovens apontadas pela mesma PNAD) sobre os dados organizados por Laércio, mostraria que uma parcela de 5,3% se encontraria nesta situação.

Assim mesmo ainda podemos afirmar que há cerca de 2.000.000 de jovens nem-nem no Brasil.  Este problema representa um duplo desafio para as políticas públicas. As atuais não impedirão a piora do problema.

O 1o. é como prevenir o aumento dos "NEM-NEM". Neste ponto, há pouco o que inventar, mas muito a fazer:
a) Melhoria da qualidade do ensino médio/tecnológico (todo o investimento hoje é na ampliação, inclusive com o co-financiamento de vagas particulares de 3o. graus precaríssimos, s/ a correspondente infra-estrutura p/garantir qualidade) associada a; 
b) políticas de manutenção do adolescente/jovem na escola (por exemplo, a ampliaçao do ainda incipiente pró-jovem);
c) reformulação dos atuais programas (caros e ineficientes) de primeiro-emprego.

O 2o. é como tratar destes Dois Milhões de jovens que precisam ser incluídos. Os programas atuais privilegiam o adoslescente/jovem que ainda está na escola. É preciso atentar para os já-excluídos. A experiência diz que é necessário intervir, com:  
a) criação de bolsas-estudo (1 a 2 anos) para os que pecisam terminar o médio e 
b) programas de capacitação profissional de curta-duração associados à
 c) criação de vagas específicas.

O mais interesssante é que os programas dos 2 candidatos falam generalidades e dizem que ampliarão programas que seus respectivos partidos já fazem. Só não dizem que estes não têm impedido a piora da situação. Os 2 candidatos estão NEM-NEM aí para o tema. O meu trocadilho foi pobre, admito. Mas, os programas de governo deles são mais ainda).

sábado, 16 de outubro de 2010

Tolerância à Desigualdade


Meu amigo Welinton Pereira me chamou a atenção para o “Custo do Aumento da Desigualdade”. Nos EUA. Sim, porque por aqui a desigualdade vem diminuindo e já é apenas vergonhosamente alta. Há 10 anos era assustadora impudorada e vergonhosamente alta. Mas, o artigo sobre os EUA usa tecnologia brasileira na sua análise. Em assuntos de desigualdade, nada supera nossa experiência.

David Pearlstein (The Washington Post) analisa várias causas para o aumento da desigualdade nos EUA (a desigualdade também aumentou na Europa e Japão), como o aumento das transações globais, o mercado financeiro (no Brasil, o principal transferidor de renda dos pobres para as os não-pobres). Mas, o autor usa a sabedoria verde-amarela quando afirma que a principal causa do aumento da desigualdade é o aumento da tolerância social em relação a ela.

Nisto, ele, sem citar talvez porque nem saiba, bebe da fonte que vem dos economistas da UNICAMP, desde a década de 80 (quando meu amigo Welinton ainda era um menino brincando pelas ruas de Ipatinga, o PT ainda era de esquerda e o FHC era sociólogo).

Pearlstein diz que a sociedade americana tem ficado mais leniente com a desigualdade. Quando uma sociedade não vê problemas em alguns sempre ganharem muito mais do que outros, ela não apóia ações para reduzi-la.

Pearlstein lembra que um país desigual pode até crescer, mas não se desenvolve como nação, como comunidade. Esta é uma lição que parecemos ignorar. Mesmo no ritmo intenso de redução da desigualdade no Brasil, para chegar a patamares toleráveis, precisaríamos dobrar o investimento/eficiência em educação pública, triplicar o valor real do salário-mínimo, levar os progrmas de transferência de renda à sua 3ª geração e ampliá-los para 100% da população pobre. Feito isto, em 10 anos teríamos um índice de desigualdade semelhante ao dos EUA.

No Brasil estamos tão acostumados à desigualdade que a achamos natural, quase divinamente instituída. Nos EUA, eles ainda chegam lá.

O artigo ainda nao está disponível na internet.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Opinião e Religião


Em época de discussões acaloradas sobre fé e lei, esta curiosa correlação foi apresentada pela Pew Research (líder mundial em análises de comportamentos), baseadas uma pesquisa feita nos EUA (no Brasil, como seria o resultado?).

Como diz a pesquisa, os brancos evangélicos são os mais contrários a união entre pessoas do mesmo sexo. Mas esta posição vem mudando com o tempo.

Pela primeira vez desde que o Pew Research Centre começou a conduzir pesquisas sobre o assunto em 1995, menos de metade dos americanos (48%) se opõem ao casamento gay, enquanto 42% são favoráveis. Todos os grupos religiosos são mais aceitação do que eram em enquetes tomadas entre 2008 e 2009. A mudança mais notável é entre branco mainstream protestantes e católicos, 49% dos quais estão agora a favor, e esse número foi ainda maior para aqueles que freqüentam a Igreja menos de uma vez por semana.

Diga-se de passagem, Bento XVI é coerente, no tocante ao clero, é também contrário a união entre pessoas de sexos distintos kkkk

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Você tem Fome de quê? ~6.000.000 de crianças brasileiras ainda tem fome de pão mesmo.


Saiu a mediçao 2010 do Índice Global de Fome.

O índice, medido bienalmente, e mostra a evolução da fome, no mundo.

África e alguns países na América Latina (Venezuela, Paraguai, Panamá e Guatemala) tiveram aumento. Em outros, a fome não se reduziu.

Menos de 30% dos países apresentam redução significativa no número de pessoas que ingerem menos do que precisam. No Brasil, a fome despencou (exclui a SPFW -pobre esta :->). A incidência de baixo-peso caiu de 37% (em 1974-1975) para 7% (2006-2007).

O relatório de 2010 traz especial atenção às crianças, ainda as maiores vítimas mundiais da fome.

Assim, no Brasil de 2010, do pré-sal, dos IPGs, quase 6.000.000 de crianças ainda são subnutridas. Durma-se com uma informação destas.



Mais dados sobre cada país



Relatório


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Os Mistérios do Voto Feminino



Neste domingo algumas surpresas eleitorais acenderam a luz de alerta nos institutos de pesquisa. Diferentemente do usual, as pesquisas do dia 1 e 2 não se confirmavam nas sondagens do dia 3, as chamadas "bocas-de-urna". Porquê? Rapidamente, analistas do IBOPE, Vox Populi e Datafolha fizeram os cruzamentos e encontram os culpados. Melhor, as culpadas.

O voto feminino se desgrudou da margem de erro. Uma em quase 5 mulheres, principalmente as moradoras das cidades com mais de 500.000 habitantes, mudaram sua tendência de voto, nos últimos dias.

Deixo os porquês específicos de lado. Política anda assunto religioso, no Brasil. Mas há aspectos sócio-econômicos que explicçao a "brecha de gênero". 

Pesquisas realizadas em vários países têm revelado que o voto feminino tem duas condicionantes: uma estrutural, outra incidental. 

A primeira é a que diz que o voto feminino tende a ser mais igual ao masculino em duas situações: Onde há menor desigualdade entre os gêneros e onde há maior. Parece que nos extremos da desigualdade, mulheres e homens votam de maneira similar. As hipóteses são que em locais com muita desigualdade há menos “consciência” desta brecha e/ou maior poder dos homens na determinação do voto feminino. Nos países com as 10 menores brechas de gênero do mundo não há praticamente distinção entre perfil de voto. Mas, onde existe a brecha de gênero é significativa, mas não das mais altas, como no caso brasileiro, mulheres tendem a votar distintamente dos homens.


O outro condicionante do voto feminino é incidental, mas se repete em todos os páises onde este tipo de análise é feita. Mulheres votam mais diferentemente de homens, quando há candidatas. Os homens candidatos são alvo de menor diferenciação de gênero do que suas pares. Por quê? Bem, aí as hipóteses ficam mais complexas. Alguém poderia dizer que as mulheres são mais rígidas com outra mulheres, mas isto já seria machismo ":-)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Em Primeiro Lugar nas Pesquisas Acadêmicas

Um levantamento na CAPES informa que tivemos 209 trabalhos de pós-graduação (mestrado, doutorado e livre-docência) sobre o Governo Lula. Outra mirada revela que teremos, até o final de 2012 outros quase 600.
Definitivamente Lula liderará as pesquisas acdadêmicas nos próximos 10 anos, ou mais.
Nunca na história deste país, desde Getúlio, um presidente foi tão estudado :-)
Abaixo, na série "Sem dados e com Política", o psicanalista e professor da UNIFESP Tales Ab'Saber faz sua leitura freudiana do nosso guru. Inteligente arrazoado, com o mérito de ir além de uma leitura economicista, é uma leitura proveitosa.
Mas, Sáber escorrega em alguns preconceitos e em um discurso de tom inflado demais para um analista. Parece irritado, Freud Explica :-)


O corpo de Lula e o pacto social

Além de brindar os ‘mais pobres’ no projeto político, presidente tratou de cooptar os ‘muito ricos’

Tales A. M. Ab'Sáber

 
Lula deu início a seu governo declarando de modo desafiador e irônico que surpreenderia fundamentalmente tanto a direita quanto a esquerda. Afora o que há de autocomplacência lépida e demagogia comum na frase, de resto dimensões narcísicas do discurso que o político e seu governo jamais aboliram, há nela, em seu fundo, uma verdade política explícita forte, que acabou por se confirmar historicamente.

O principal da frase não é seu tom paradoxal e triunfante, a célebre tendência falastrona do presidente, da qual ele próprio é autoconsciente, mas a clara referência a fazer uma política que intervenha nos dois polos opostos da vida nacional, o claro desejo de articular os extremos em seu governo, e desde já podemos dizer, em seu corpo, de modo a que as posições políticas limites acabassem por suspender, rever e inverter seus próprios critérios, uma a favor da outra. E de fato este projeto foi desenvolvido, consciente ou inconscientemente, de modo determinado e por golpes do acaso, ao longo de seus dois governos.

Esse foi o paradoxo social e político do governo Lula. Ele foi expresso em duas dimensões: uma, junto à massa de pobres que aderiu pessoalmente ao presidente, como lulismo; outra, como pragmatismo e grande liberdade liberal, tanto para a economia quanto para os velhos e bons negócios da fisiologia e do amplo patrimonialismo brasileiro mais tradicional. O fato de um novo grupo, o do partido do presidente e dos sindicalistas ligados a ele, adentrar o velho condomínio do poder não representava problema suficiente para as velhas estruturas de controle político nacional, ainda mais se isso significasse, como acabou por se confirmar, o fim da tensão classista e contestatória própria à tradição histórica petista.

O fim incondicional da perspectiva de luta de classes do Partido dos Trabalhadores, e sua adesão enquanto partido no poder à tradição política imoral e particularista brasileiras, foi o primeiro e muito importante movimento político realizado pelo governo Lula, em sua busca de consenso em todo o espectro da vida social brasileira. Derrotado o próprio habitus de oposição de seu partido, que chegava ao poder através do corpo transferencial - ou seja, amoroso - de Lula, realizou-se sua primeira grande mágica política: a dissolução de qualquer oposição real ao próprio governo.

Isso por que, de fato, o segundo muito claro e ainda mais fundamental golpe, este de caráter econômico, simplesmente deixou a oposição à direita do governo durante anos sem objeto e sem discurso, para além de sua tradicional e dócil tendência de agregação a todo poder efetivo: Lula entregou inteiramente as grandes balizas macroeconômicas essenciais do país às avaliações e às tensões particulares do mercado interno e global, ao autonomisar na prática o Banco Central, realizando assim uma velha demanda neoliberal e peessedebista, além de colocar em sua direção um verdadeiro banqueiro internacional puro-sangue, Henrique Meirelles, ex-presidente do Bank Boston. Assim ele simplesmente se apropriou sub-repticiamente da árdua herança econômica tucana.

Esse golpe, como não poderia deixar de ser, atingiu profundamente as bases ideológicas e práticas da direita local. Através dele, com um gesto de cordialidade que seria retribuído, Lula simplesmente roubou a verdadeira base social tucana. Além de constelar as classes muito pobres em seu projeto político, o que já foi demonstrado por André Singer, Lula também cooptou amplamente os muito ricos, movimento sem o qual não se pode explicar o grande consenso que se criou ao redor do seu nome. Nas vésperas de sua segunda eleição, grandes banqueiros declaravam explicitamente nos jornais que para eles tanto fazia a vitória de Lula ou de seu rival conservador de então, Geraldo Alckmin. O que, de fato, creio que era uma inverdade. Eles preferiam Lula.

A grande direita econômica se realinhara ao redor de um governo neopopulista de mercado, que buscava realizar seu pacto social, que não foi escrito como o de Moncloa, mas garantido pelo corpo carismático especial de Lula. Era bom um governo a favor de tudo que pacificasse e integrasse as tensões sociais brasileiras tendo como único fiador mágico o corpo transferencial de Lula, a radicalidade de seu carisma.

O terceiro elemento muito poderoso na construção do amplo pacto social lulista foi a tão ampla quanto propagandeada política de bolsas sociais, articulada a uma imensa expansão do crédito popular, que, se não realizou a cidadania plena dos pobres de nenhum modo, lhes deu a importante ilusão de pertença social pela via de algum baixo consumo, o que, dado o estado atual de regressão das coisas humanas, é o único critério suficiente de realização e felicidade. E, também, de realização do próprio mercado e da produção local, que se aquecia, ficando feliz, bem feliz - como foi feliz a própria cultura soft e popzinha cheia de cantoras malemolentes do período. Lula passou a ser um grande agenciador do desejo geral ao ensaiar um mínimo circulo virtuoso na economia, com uma social democracia mínima, fundada de fato sobre o pacto político estranho que realizou. Resultado: certa vez ouvi, no mesmo dia, de um barão banqueiro e da diarista que trabalha em casa a mesma frase: "Lula fez muito bem para o Brasil".

Assim definitivamente, pela desmobilização da tradição crítica, pelos interesses graúdos bem garantidos, com boas perspectivas de negócios, e pelos pobres podendo sentir o gostinho de uma TV de plasma comprada em 30 meses, não havia por que existir, de nenhum modo, oposição política ao governo do então presidente, ex-pau de arara, ex-metalúrgico, ex-sindicalista, ex-socialista petista. Sua aprovação bateu e se manteve nos 80%, respondendo, de modo desigual, mas combinado, a interesses concretos diversos, articulados em seu corpo garantia, o que, considerando-se as clivagens ainda radicais do País, não deixa de ser uma verdadeira política do absurdo.

Para o desespero dos chiques entre si tupiniquins e paulistanos, Lula também continuou a sinalizar simbolicamente, abertamente, aos pobres com seu antigo habitus de classe, em festas juninas, churrascos com futebol e isopores de cerveja na praia privativa da Presidência, além do famoso futebolês, e assim convencendo-os facilmente e oniricamente, via identificação carismática - seu corpo transferencial - que eles não poderiam esperar nenhum ganho social para além dele, que ele, que era um deles, representava o limite social absoluto dos interesses dos pobres no País.

Ao final do período, um dado fantástico entrou em cena: com a falência adiantada, a partir de 2008, do capitalismo financeiro americano e europeu, o Brasil, com seu governo de esquerda a favor de tudo, se tornou um verdadeiro hype político e econômico global. Pela primeira vez na história deste País, dada a regressão e paralisação geral do sistema internacional, o Brasil, sempre algo avançado e algo regredido nas coisas da civilização, tornou-se "inteiramente contemporâneo" do momento atual do capitalismo global, que, em grande dívida consigo mesmo, não representava mais medida externa para países periféricos como o nosso. Noutras palavras, o capitalismo geral deu um grande passo na direção de sua brasilianização.

Assim, era necessário que surgisse tanto um novo modelo conservador que desse conta da avançada ruína neoliberal quanto uma injeção de esperança econômica para a crise geral, e nada como um bem-comportado mercado emergente como o brasileiro, satisfeito e integralmente convencido pelo sistema das mercadorias, para reanimar a ideologia mais ampla. Tudo isso Lula amarrou em seu amplo pacto, tramado em seu corpo retórico, que também tinha um grande potencial simbólico pop para a indústria cultural global, significante advindo do todo, nada estudado pelos cientistas sociais. Ele virou o cara, para um Obama em busca de alguma referência para o próprio descarrilamento econômico e social de seu mundo.

Enfim, liquidando a oposição, mantendo as práticas políticas fisiológicas tradicionais brasileiras, roubando a base social real da direita, promovendo uma mínima inserção social de massas pela via do consumo, exercitando seu carisma identificatório e pop com os pobres e com a indústria cultural global e servindo como modelo para o momento avançado da crise do capitalismo central, Lula simplesmente rapou a mesa da política nacional. Além, é claro, de sua proverbial estrela: no mesmo período o país descobriu petróleo e foi brindado pelo mercado do fetichismo universal da mercadoria com uma Copa do Mundo e uma Olimpíada! Certamente deve haver algum método, se não muito, em tal ordem fantástica das coisas.

Sua estrela, seu corpo carismático e sua habilidade pragmática, macunaímica para alguns, bras-cubiana para outros, certamente midiática e pós-ética, realizaram, com poucos mortos e feridos - aparentemente, sacrificou-se apenas a perspectiva crítica da esquerda, que é a minha - um verdadeiro pacto social a favor que, enquanto o PT de fato existiu, a direita jamais conseguiu realizar neste país.

TALES A. M. AB’SÁBER É PSICANALISTA E PROFESSOR DE FILOSOFIA DA PSICANÁLISE NO CURSO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO (UNIFESP). É AUTOR DE O SONHAR RESTAURADO - FORMAS DO SONHAR EM BION, WINNICOTT E FREUD (ED. 34, 2005)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Lula sai do Planalto, mas continuará na Universidade...

Para meus caros economistas, este post é um intervalo nos dados para análise de significados. Abaixo copio o recente artigo do meu compadre André Singer e uma réplica da nossa (minha, de André e de tantos FFLCHentos) Sylvia Carvalho Franco.
André sintetiza seu artigo já clássico e histórico sobre o Lulismo, sua base social e lógica de sustentação, inclusive com  suas semelhanças com Vargas. Sylvia faz fortes seus contrapontos, e coloca uma análise de caráter moral na leitura do movimento. Seu texto é francamente mais quente e opinativo do que o de André, sempre fleumático como quem leria um manual de emergência no meio de um incêndio.
André faz uma análise mais distante, mesmo sendo muito próximo. Sylvia se engaja em um debate.
Minha impressão é que ambos acertam, mesmo quando podemos discordar deles. Acertam até no que discordam. Acertam em Todas comparaçoes históricas são imprecisas.
Talvez só se compreenda melhor o lulismo em algumas décadas. Não há distanciamento para tal análise, agora. O país parece dividido entre 3 torcidas organizadas: Lula FC, Anti-Lula FC e outra parte que trocou de canal e está assistindo a novela:-)
Mesmo assim, é certo que Lula deixará o Planalto para entrar definitivamente na Universidade, como assunto.

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A história e seus ardis



ANDRÉ SINGER


RESUMO

André Singer aplica às eleições de 2010 sua tese do “realinhamento” do eleitorado brasileiro, caracterizado pela adesão das classes baixas ao “lulismo” (por verem em Lula a possibilidade de ascensão social sem confronto) e pelo afastamento da classe média tradicionalmente petista, após o escândalo do mensalão

 
CONTA-SE QUE CERTA VEZ o engenheiro Leonel Brizola teria levado o metalúrgico Lula ao túmulo de Getúlio Vargas em São Borja (RS). Lá chegando, o gaúcho pôs-se a conversar com o ex-presidente. Depois de algumas palavras introdutórias, apresentou o líder do PT ao homem que liderou a Revolução de 1930: “Doutor Getúlio, este é o Lula”, disse, ou algo parecido. Em seguida, pediu que Lula cumprimentasse o morto. Não se sabe a reação do petista.
Será que algum dos personagens do encontro pressentiu que, naquela hora, estavam sendo reatados fios interrompidos da história brasileira? Desconfio que não.
Os tempos eram de furiosa desmontagem neoliberal da herança populista dos anos 1940/50. Mesmo aliados, em 1998 PT e PDT -praticamente tudo o que restava de esquerda eleitoralmente relevante- perderiam para Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno. O consulado tucano parecia destinado a durar pelo menos 20 anos e trazer em definitivo o neoliberalismo para o Brasil.
Foi por uma brecha imprevista, aberta pelo aumento do desemprego no segundo mandato de FHC, que Lula encontrou o caminho para a Presidência da República. Para aproveitá-la, fez substanciais concessões ao capital, pois a ameaça de radicalização teria afastado o eleitorado de baixíssima renda, o qual deseja que as mudanças se deem sem ameaça à ordem.
Apesar da pacificação conquistada com a “Carta ao Povo Brasileiro” ter sido suficiente para vencer, o subproletariado não aderiu em bloco. Havia mais apoio entre os que tinham renda familiar acima de cinco salários mínimos do que entre os que ganhavam menos do que isso, como, aliás, sempre acontecera desde 1989. Ainda que as diferenças pudessem ser pequenas, elas expressavam a persistente desconfiança do “povão” em relação ao radicalismo do PT.
Depois de 2002, tudo iria mudar. A vitória levaria ao poder talvez o mais varguista dos sucessores do dr. Getúlio. Não em aspectos superficiais, pois nestes são expressivas as diferenças entre o latifundiário do Sul e o retirante do Nordeste. Tampouco no sentido de arbitrar, desde o alto, o interesse de inúmeras frações de classe, fazendo um governo que atende do banqueiro ao morador de rua. Dadas as condições, todos os presidentes tentam o mesmo milagre.
O que há de especificamente varguista é a ligação com setores populares antes desarticulados. Ao constituir, desde o alto, o povo em ator político, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aos pobres que Getúlio encarnou.
Mas em 1º de janeiro de 2003 ninguém poderia prever o enredo urdido pela história. Para manter em calma a burguesia, o mandato inicial de Lula, como se recorda, foi marcado pela condução conservadora nos três principais itens da macroeconomia: altos superavits primários, juros elevados e câmbio flutuante. Na aparência, o governo seguia o rumo de FHC e seria levado à impopularidade pelas mesmas boas razões.

De fato, 2003 foi um ano recessivo e causou desconforto nos setores progressistas. Ao final, parte da esquerda deixou o PT para formar o PSOL. Mesmo com a retomada econômica no horizonte de 2004, Brizola deve ter morrido em desacordo com Lula, por ter transigido com o adversário.

Ocorre que, de maneira discreta, outro tripé de medidas punha em marcha um aumento do consumo popular, na contramão da ortodoxia. No final de 2003, dois programas, aparentemente marginais, foram lançados sem estardalhaço: o Bolsa Família e o crédito consignado. Um era visto como mera junção das iniciativas de FHC. O segundo, como paliativo para os altíssimos juros praticados pelo Banco Central.

Em 2004, o salário mínimo começa a se recuperar, movimento acelerado em 2005. Comendo o mingau pela borda, os três aportes juntos começaram a surtir um efeito tão poderoso quanto subestimado: o mercado interno de massa se mexia, apesar do conservadorismo macroeconômico.

Nas pequenas localidades do interior nordestino, na vasta região amazônica, nos lugares onde a aposentadoria representava o único meio de vida, havia um verdadeiro espetáculo de crescimento, o qual passava despercebido para os “formadores de opinião”.

Quando sobrevém a tempestade do “mensalão” em 2005 -e, despertado do sono eterno pela reedição do cerco midiático de que fora vítima meio século antes no Catete, o espectro do dr. Getúlio começa a rondar o Planalto-, já estavam dadas as condições para o passo decisivo.

Em 3 de agosto -sempre agosto-, em Garanhuns (PE), perante milhares de camponeses pobres da região em que nascera, Lula desafiou os que lhe moviam a guerra de notícias: “Se eu for [candidato], com ódio ou sem ódio, eles vão ter que me engolir outra vez”.

Até então, a ligação entre Lula e os setores populares era virtual. Chegara ao topo cavalgando uma onda de insatisfação puxada pela classe média. Optou por não confrontar os donos do dinheiro. Perdeu parte da esquerda. Na margem, acionou mecanismos quase invisíveis de ajuda aos mais necessitados, cujo efeito ninguém conhecia bem.

Foi só então que, empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua base se encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo que identificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto.

Os setores mais sensíveis da oposição perceberam que fora dada a ignição a uma fagulha de alta potência e decidiram recuar. A hipótese de impedimento foi arquivada, para decepção dos que não haviam entendido que placas tectônicas do Brasil profundo estavam em movimento.

Em 25 de agosto, um dia depois do aniversário do suicídio de Vargas, Lula podia declarar perante o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social que a página fora virada: “Nem farei o que fez o Getúlio Vargas, nem farei o que fez o Jânio Quadros, nem farei o que fez o João Goulart. O meu comportamento será o comportamento que teve o Juscelino Kubitschek: paciência, paciência e paciência”. Uma onda vinda de baixo sustentava a bonomia presidencial.

O Lula que emerge nos braços do povo, depois da crise, depende menos do beneplácito do capital. Daí a entrada de Dilma Rousseff e Guido Mantega em postos estratégicos, o que mudou aspectos relevantes da política macroeconômica. Os investimentos públicos, contidos por uma execução orçamentária contracionista, foram descongelados no final de 2005. O salário mínimo tem um aumento real de 14% em 2006.

Para o público informado, a constatação do que ocorrera ainda demoraria a chegar. Foi preciso atingir o segundo turno de 2006 para que ficasse claro que o povo tinha tomado partido, ainda que em certos ambientes de classe média “ninguém” votasse em Lula.

A distribuição dos votos por renda mostra a intensa polarização social por ocasião do pleito de 2006. Pela primeira vez, o andar de baixo tinha fechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define o realinhamento iniciado quatro anos antes.

Embora, do ponto de vista quantitativo, a mudança relevante tenha se dado em 2002, o que define o período é o duplo movimento de afastamento da classe média e aproximação dos mais pobres. Por isso, o mais correto é pensar que o realinhamento começa em 2002, mas só adquire a feição definitiva em 2006. Como, por sinal, aconteceu com Roosevelt entre 1932 e 1936.

Assentado sobre uma correlação de forças com menor pendência para o capital, o segundo mandato permitirá a Lula maior desenvoltura. Com o lançamento do PAC, fruto de um orçamento menos engessado, aumentam as obras públicas, as quais vão absorver mão de obra, além de induzir ao investimento privado

Em 2007, foi gerado 1,6 milhão de empregos, 30% a mais do que no ano anterior. A recuperação do salário mínimo é acelerada, com aumento real de 31% de 2007 a 2010, contra 19% no primeiro mandato, conforme estimativa de um dos diretores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)2. A geração de emprego e renda explica os 70% de aprovação do governo desde então.

Nem mesmo a derrubada da CPMF, com a qual a burguesia mostrou os dentes no final de 2007, reduziu o ritmo dos projetos governamentais. A transferência de renda continuou a crescer. Foi só ao encontrar a parede do tsunami financeiro, no último trimestre de 2008, que se interrompeu o ciclo ascendente de produção e consumo. Teria chegado, então, segundo alguns, a hora da verdade. Com as exportações em baixa, o lulismo iria definhar.

Mas o lulismo já contava com um mercado interno de massa ativado, capaz de contrabalançar o impacto da crise no comércio exterior. A ideia, difundida pelo presidente, de que a população podia comprar sem medo de quebrar, ajudou a conter o que poderia ser um choque recessivo e a relançar a economia em tempo curto e velocidade alta.

Além da desoneração fiscal estratégica, como a do IPI sobre os automóveis e os eletrodomésticos da linha branca, o papel dos bancos públicos -em particular o do BNDES- na sustentação das empresas aumentou a capacidade do Estado para conduzir a economia. Numa manobra que lembra a de Vargas na Segunda Guerra, Lula utilizou a situação externa para impulsionar a produção local.

Surge uma camada de empresários -Eike Batista parece ser figura emblemática, como notava dias atrás um economista-, dispostos a seguir as orientações do governo. A principal delas é puxar o crescimento por meio de grandes obras, como as de Itaboraí -o novel polo petroquímico no Estado do Rio-, as de Suape (PE) e de Belo Monte, na Amazônia. Cada uma delas alavancará regiões inteiras.

Por fim, a aliança entre a burguesia e o povo, relíquia de tempos passados que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializa diante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixe mentir.

A candidatura Dilma representa o arco que o lulismo construiu. A ex-ministra, por sua biografia, é talhada para levar adiante um projeto nacional pluriclassista. O fato de ter sido do PDT até pouco tempo atrás não é casual. A mãe do PAC tem uma visão dos setores estratégicos em que a burguesia terá que investir, com o BNDES.

O povo lulista, que deseja distribuição da renda sem radicalização política, já dá sinais de que o alinhamento fechado em 2006 está em vigor. Em duas semanas de propaganda eleitoral na TV, Dilma subiu 9 pontos percentuais e Serra caiu 5. À medida que os mais pobres adquirem a informação de que ela é a candidata de Lula, o perfil do seu eleitorado se aproxima do que foi o de Lula em 2006. Ou seja, o voto em Dilma cresce conforme cai a renda, a escolaridade e a prosperidade regional.

A classe média tradicional, em que pese aprovar o governo, continuará a votar na oposição, como demonstram a dianteira de Serra em Curitiba e o virtual empate em São Paulo, municípios em que o peso numérico das camadas intermediárias é significativo.

Parte delas, sobretudo entre os jovens universitários, deverá optar por Marina Silva. Isso explica por que os que têm renda familiar mensal acima de cinco salários mínimos dão 12 pontos percentuais de vantagem para a soma de Serra e Marina sobre Dilma na pesquisa Datafolha concluída em 3/9.

O problema da oposição é que esse segmento reúne apenas 14% do eleitorado, de acordo com a amostra utilizada pelo Datafolha, enquanto os mais pobres (até dois salários mínimos de renda familiar mensal) são 48% do eleitorado. Nesse segmento, Dilma possui uma diferença de 22 pontos percentuais sobre Serra e Marina somados! Se vier a ganhar no primeiro turno, será graças ao apoio, sobretudo, dos eleitores de baixíssima renda, como ocorreu com Lula na eleição passada.

A feição popular da provável vitória de Dilma confirma, assim, a hipótese que sugerimos no ano passado a respeito da novidade que emergiu em 2006. Se estivermos certos, por um bom tempo o PSDB precisará aprender a falar a linguagem do lulismo para ter chances eleitorais. Não se trata de mexicanização, mas de realinhamento, o qual significa menos a vitória reiterada de um mesmo grupo e mais a definição de uma agenda que decorre do vínculo entre certas camadas e partidos ou candidatos.

Quando um governo põe em marcha mecanismos de ascensão social como os que se deram no New Deal, e como estamos a assistir hoje no Brasil, determina o andamento da política por um longo período. Num primeiro momento, trata-se da adesão dos setores beneficiados aos partidos envolvidos na mudança -o Partido Democrata nos EUA, o PT no Brasil.

Com o passar do tempo e as oscilações da conjuntura, os aderentes menos entusiastas podem votar em outro partido, mesmo sem romper o alinhamento inicial. Foi o que aconteceu com as vitórias do republicano Eisenhower (1952 e 1956) e dos democratas Kennedy (1960) e Johnson (1964).

Mas para isso a oposição não pode ser extremada, como bem o percebeu a hábil Marina Silva. Até certa altura da sua campanha, José Serra igualmente trilhou esse caminho. Foi a fase em que propôs cortar juros e duplicar a abrangência do Bolsa Família.

Depois, tragado pela lógica do escândalo, retornou ao caminho udenista da denúncia moral, que só garante os votos de classe média -o que, no Brasil, não ganha eleição. Convém lembrar que no ciclo dominado pelo alinhamento varguista, a UDN só conseguiu vencer com um candidato: Jânio Quadros, que falava a linguagem populista. Fora disso, resta o golpe, sombra da qual estamos livres.

Qual será a duração do ciclo aberto em 2002, completado em 2006, e, aparentemente, a ser confirmado em 2010? O realinhamento abrange, por definição, um período longo. O último que vivemos, dominado pelo oposicionismo do MDB/PMDB, durou 12 anos (1974-86) e foi sepultado, quem sabe antes do tempo, pelo fracasso em controlar a inflação. A resposta para o atual momento também deve contemplar a economia.

Por isso, as condições de manter, pelo menos, o ritmo de crescimento médio alcançado no segundo mandato de Lula, algo como 4,5% de elevação anual do PIB, estarão no centro das preocupações do novo presidente. Sem ele, as premissas do lulismo ficam ameaçadas. Recados criptografados sobre a necessidade de reduzir a rapidez do crescimento e de fazer um ajuste fiscal duro já apareceram na imprensa, dirigidos a Dilma, provável vencedora.

O capital financeiro -apelidado na mídia de “os mercados”- vai lhe cobrar o tradicional pedágio de quem ainda não “provou” ser confiável. Caso os reclamos de pisar no freio não sejam atendidos, sempre haverá o recurso de o BC -cuja direção deverá continuar com alguém como Henrique Meirelles, senão o próprio- aumentar os juros. O aumento real do salário mínimo no primeiro ano de governo, que dependerá da presidente, pois o PIB ficou estagnado em 2009, será outro teste relevante.

Convém notar que, no segundo mandato de Lula, ainda que de modo relutante, o BC foi obrigado a trabalhar com juros mais baixos. Mas o cabo de guerra será reiniciado no dia 3 de janeiro de 2011. Com os jogadores em posse de um estoque de fichas renovados pela eleição, uns apostarão em uma recuperação do espaço perdido, outros numa aceleração do caminho trilhado no segundo mandato.

O PMDB, elevado à posição de sócio importante da vitória, atribuiu-se, na campanha, o papel de interlocutor com o empresariado. O PT, possivelmente fortalecido por uma bancada maior, deverá, pela lógica, fazer-lhe o contraponto do ângulo popular. A escolha dos presidentes da Câmara e do Senado, em fevereiro, servirá de termômetro para o balanço das respectivas forças.

O futuro do lulismo dependerá de continuar incorporando, com salários melhores, os pobres ao mundo do trabalho formal. Em torno desse ponto é que se darão os principais conflitos e se definirá a extensão do ciclo. Alguns analistas da oposição alertam para a proximidade de um índice de emprego que começará a encarecer a mão de obra e gerar inflação. Como mostra Stiglitz,3 é a conversa habitual dos conservadores para brecar a expansão econômica.

Por fim, não se deve esquecer que uma palavra decisiva sobre esses embates virá de São Bernardo, onde residirá o ex-presidente, bem mais perto da capital do que foi, no passado, São Borja.

Aguardam-se os conselhos de Vargas e Brizola, dos quais poderemos tomar conhecimento naquelas mensagens psicografadas por Elio Gaspari.
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Notas
1. Ver André Singer. “Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo”, “Novos Estudos”, 85, nov 2009. Link para o artigo em folha.com/ilustríssima
2. Ver João Sicsú. “Dois Projetos em Disputa”. “Teoria e Debate”, 88, mai/jun 2010.
3. Ver Joseph Stiglitz, “Os Exuberantes Anos 90″, Companhia das Letras, 2003.

Ao constituir, desde o alto, o povo em ator político, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aos pobres que Getúlio encarnou. Empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua base se encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo que identificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto
Em 2006, pela primeira vez, o andar de baixo tinha fechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define o realinhamento iniciado quatro anos antes
A aliança entre a burguesia e o povo, que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializa diante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixe mentir

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Razões e desrazões do lulismo
O lulismo seria um continuador do varguismo? Sim, mas pelo que Getúlio tinha de pior, segundo Maria Sylvia Carvalho Franco e Sergio Fausto, que fazem um contraponto ao artigo de André Singer "A história e seus ardis", publicado na Ilustríssima, em 19/9



De casas, pastores e lobos


RESUMO Lula valeu-se da herança varguista do paternalismo para constituir seu governo e sua popularidade, calçada na cultura da carência dos brasileiros, em violações de direitos e no marketing político. O alardeado êxito comercial leva a escolhas eleitorais sem racionalidade, que ignoram fragilidades econômicas e valores cívicos.


MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
ENTRE AS IMAGENS ARCAICAS do poder político estão as do pastor e do pai. Esta última figura, o presidente Lula reclamou explicitamente para si. Não bastasse a evocação do paternalismo, as mazelas que o acompanham fazem-se mais e mais visíveis. O cerne dessa ordem está, justamente, em transpor a casa -moradia da família grande, com pais, filhos, parentes, clientela, compadres, afilhados e companheiros- para o palácio, com seus membros convertidos em ministros, deputados e senadores, agregados, sindicalistas e executivos de empresas oficiais.
Emblemáticos desse regime são os acontecimentos na Casa Civil deste governo, tornada gabinete pessoal de José Dirceu e da ministra demissionária. Ambos convenientemente descartados. Lula de nada sabia, esteve cego, surdo, calado; Dilma resguarda-se dos eventuais dolos de seu factótum, simples "assessora".
A gratidão aos acólitos, nula nesses protagonistas, é virtude privada e pouco interessa em política: importantes são os princípios que fundam o Estado e o espírito da magistratura, como a prudência e o respeito à legalidade. Nesse campo ético, o governante obriga-se a responder por seus próprios atos e os de seus adjuntos. O avesso dessa máxima orienta nossos dirigentes. Em atos e palavras, a disciplina necessária aos negócios públicos é subvertida com farsas tramadas para eludir responsabilidades.
Daí é um passo converter a economia doméstica em economia política, o interesse privado em fins coletivos, a dominação pessoal em benefício para os pobres, a pura mentira em razão de Estado. O crime de violação de sigilos constitucionalmente garantidos, como as declarações de rendimentos, transforma-se em ato banal para o ministro da Fazenda. As vítimas desse atentado convertem-se em réus, a imprensa que divulga os feitos transforma-se em golpista que os maquina.
A esse quadro de condutas e valores invertidos Dilma pertence: escolheu integrá-lo ao sagrar-se "mãe", como seu padrinho diz-se "pai" dos brasileiros. À sombra do arcaico paternalismo, acomodou-se um esmaecido perfil de mulher moderna, da jovem ex-resistente contra a ditadura, da universitária e profissional habilitada.
É confrangedor ver a espinha humana vergar às técnicas de controle político: a curvatura vai da aparência física à indumentária, ao discurso, à identidade, perdida na aliança com personagens cujo estigma a candidata quer afastar de si. José Dirceu faz sua campanha Brasil afora, Antonio Palocci -derrubado no episódio da violação, sem mais, de um preceito constitucional- a avaliza junto aos empresários, temerosos da "guerrilheira", mas desatentos à ameaça que representa, a eles como a toda a cidadania, a possível devassa, sem ordem judicial, na vida econômica de qualquer pessoa. Palocci é enaltecido em jantar, com direito a fotografia risonha e cordial, impressa em jornais, comemorando a "classe média" alardeada na propaganda e erguida ao paraíso mercantil. 
 Há quem afirme que essa "classe média, pela primeira vez neste país, compra e vota com racionalidade". A associação é significativa: compra e vota. Racionalidade, nesse exíguo espaço de pensamento, inexiste: se a minguada Bolsa Família -suposto arcano da prosperidade- permite ao pobre comer, a racionalidade vai da mão para a boca (dizia o velho Marx).
Esse critério de voto realça outro arquétipo do mando político, o pastoreio, reativado por Lula e Dilma ao prometerem "cuidar" dos brasileiros. Filhos são singulares, não compõem um rebanho de animais dóceis, tangidos pelo pastor. Este "trata" de sua manada: a alimenta, supervisiona e preside seus cruzamentos, reproduzindo-a e engordando-a para o corte. Se o pastor e seus ajudantes fornecem comida, dia virá em que, por sua vez, comerão o redil, convertendo-se em lobos, saciando-se com o poder garantido pelos votos encurralados.
É esse viés obsoleto que Lula soube expandir, distorcendo o regime democrático. Não raro, o pastor comunga, com sua confraria, a mesma origem e formação, o que o torna conhecedor das almas que visa aliciar e bom juiz das palavras que as atingirão. Mas, neste caso, Lula não é só um ex-partícipe do rebanho e do sertão que abandonou, ao passar para a classe dominante com suas benesses: ele é simbólico dessa cultura de carência e sabe explorá-la, apoiado em suas falanges de marqueteiros.
A clássica técnica de dominação -medo e esperança-, entranhada na crença em entidades salvadoras, é a energia que nutre o fantástico aplauso ao governo: o temor de perder o recebido, conjugado à expectativa de conservá-lo e à gratidão pela dádiva concedida, não deixa nada contido "sub ordine rationis", tudo é carreado para a superstição.
O amálgama -fé e graça- impulsiona o calamitoso circuito inverso, rumo ao retrocesso, de nossas instituições políticas. Em entrevista à Folha, Maria Celina D'Araujo cotejou o presente "pai do povo" com Getúlio Vargas, destacando decisiva diferença entre ambos: Vargas formou uma força de trabalho industrial, urbana, organizada. Interferiu, portanto -muitas vezes para o mal, com implacável ditadura-, nas diretrizes da organização econômica e social do país. Sua outorga de direitos ao trabalhador não gerou uma consciência autônoma, mas não explorou o puro assistencialismo.
Lula projetou a cultura política para atrás de Vargas, revertendo-a no mínimo à República Velha (1889-1930), com a sua tralha de favores, hoje reforçada pela ampliação capitalista e pelas técnicas de controle sociocultural, monitorando as eleições desde as imagens dos candidatos até o mais recôndito sufrágio. De Vargas, retomou o domínio do sindicato e transfez o peleguismo em arma para o aparelhamento do Estado.
 Voltando ao pastor: se o rebanho prospera, alimentado pelos milhões aspergidos na economia, o milagre alimenta o comércio especializado em vender para pobres, para a "classe média" que teria alterado, reza a propaganda, a estrutura social do país. Mas, de fato, os pobres continuam pobres, não raro adquirindo produtos inferiores e precários (por isto mesmo reiterativos das compras), "made in China" ou aqui produzidos por imigrantes ilegais na situação de escravos.
Enquanto isto, o comércio de altíssimo luxo multiplica-se nos centros ricos. A pletora de importações -da quinquilharia aos carros preciosos, todos produtos acabados- anuncia a desindustrialização e compromete as reservas cambiais (lembremos de Dutra). Insistindo no plano comercial -a grande arma publicitária-, indaga-se: que é da menor desigualdade social? Até quando se afastará a inadimplência (Serasa, agosto 2010)?
E o setor produtivo, com a perda bilionária da exportação de bens industrializados, face à de matérias-primas, com a pauta de exportações regredindo ao nível de l978, resultando em queda no saldo comercial, rombo nas contas externas e maior dependência de capitais a curto prazo?
Enfim, menos empregos e menos riqueza, somadas a outras consequências, como a falta de infraestrutura e a evasão empresarial (Associação do Comércio Exterior do Brasil). A economia vai bem? O ministro da Fazenda inverte sua tendência funesta e afirma que a exportação majoritária de commodities não é problema.
Impossível ser contra mitigar a pobreza material, mas a vida do espírito não deve continuar miserável. Que livre-arbítrio pode emergir nesse mundo avesso à consciência crítica? Esta é outra arma brandida pela sofística própria à propaganda. Quanto menos informados os eleitores (a não ser no interesse da facção que sustenta a catequese, como o merchandising de seus prosélitos), melhor para os marqueteiros, exímios em desvirtuar os valores democráticos para alavancar seus mecenas. Essa inversão ética bloqueia compreensões racionais: há quem fique perplexo diante da sobrevivência de Lula através dos escândalos que o atingem, razões sobejas para sua rejeição. Mas a solércia o leva a abandonar os náufragos, convertendo a ingratidão pessoal em decoro cívico, punitivo da prevaricação. Os subterfúgios que implementou fornecem-lhe a escapatória: nada acontece porque o chamado "cenário" onde ele habita funda-se na desrazão instalada ao longo das camadas sociais, tornando-as crédulas em maravilhas. Todas as aparências servem à prestidigitação publicitária: o mundo efetivo é escondido, as deformações de seus aspectos são meticulosamente produzidas, mitos fabricam os candidatos, engrandecendo suas proporções.
O perigo, nessa engrenagem de seres vivos, é que estes podem escapar ao planejado: a irracionalidade que a sustenta pode ameaçá-la, pelo açodamento e por certezas impensadas, como em suas crises periódicas.
De todo modo, enquanto a falange de marqueteiros a serviço de Lula, infantaria pesada, faz razia no território político e colhe seu butim, a desordenada oposição custou a perceber que caíra, distraída, em um campo de batalha.
"Lula não é só um ex-partícipe do sertão que abandonou, ao passar para a classe dominante: ele é simbólico dessa cultura de carência e sabe explorá-la"
"Impossível ser contra mitigar a pobreza, mas a vida do espírito não deve continuar miserável. Que livre-arbítrio pode emergir nesse mundo avesso à consciência crítica?"