sexta-feira, 8 de julho de 2011

NOSSAS MISÉRIAS E A MISÉRIA DOS OUTROS



Qualquer declaração obtusa de um político, factóide governamental ou oposicionista ou até o penteado do Neymar (por sinal, ele está igualzinho a um Unicórnio:>) ocupa mais espaço nas páginas/telas de notícias e mesas de bares do que o programa  “Brasil sem Miséria” (BSM).

Fora das páginas internas e de sonolentas discussões de especialistas, pouco se discute sobre a mais importante iniciativa social atual. Na única audiência pública feita pela comissão de da Câmara, havia menos gente que na arquibancada da Portuguesa. Não se convocou a ministra; ninguém pediu uma CPI para revisar os dados; nem protocolou no MP um pedido contra critérios de benefícios. Em bom português corporativo, "no one cares" :->

Neste ambiente de baixa repercussão, o governo apresentou as metas, indicadores de trabalho e orçamento do BSM. O objetivo é tirar mais de 15 milhões da miséria. Para os + chatos, precisamente 16.267703 brasileiros (dados do Censo de 2010) ou 8,5% da população. Eles têm renda familiar mensal inferior a R$ 70. Neste grupo, há "os miseráveis dos miseráveis” (renda inferior R$ 39/mês, menos de 3 moedinhas de 0,50 centavos/dia) e os “supermiseráveis”: 4,8 milhões de pessoas com renda Zero.

A quase ausência de um amplo debate público parece contribuir para um foco excessivo nos números. Porém, o BSM toca em aspectos que vão muito além da definição estatística de pobreza.

O que fundamenta um programa como o BSM não são números, é “nossa” visão sobre os pobres (nossa= classe média, estudada e auto-intitulada “sensível socialmente”). Quando se define pobreza, antes de um critério econômico, estabelece-se um rótulo social. As pessoas passam a ser definidas e resumidas como “pobres”.

O “Brasil sem Miséria” se dará em uma sociedade que compartilha uma visão predominante que define pobreza apenas pelas suas ausências. Pobre é Não ter renda. Não ter escola. Não ter saúde. O POBRE, segundo a visão não-pobre (a “nossa” visão) é Não _________ (complete a frase).

Com esta perspectiva, a sociedade brasileira só verá o BSM como uma esmola governamental institucionalizada. O projeto de erradicar a miséria é uma oportunidade para que a sociedade reflita pontos importantes. Vou citar 3 deles:

1) O primeiro é a perspectiva da assistência social como direito. Pelas “regras do jogo”, definidas na Constituição, todo cidadão brasileiro tem direito a parâmetros mínimos de vida digna. Caso não lhe seja dada a possibilidade de alcançar isto (através de serviços públicos, emprego e renda), se a sociedade (através de todos os seus atores públicos ou não estatais ou privados) fracassar em prover tais fatores, ela deve “compensar” os afetados pelo seu fracasso. Esta é a base na qual se funda qualquer programa social. Enxergar os cidadãos que chamamos de “miseráveis”, isto é, SEM nada, como portadores de direitos é essencial. Antes de Não XXXX. Eles são SIM Direitos.

2) Segundo, a sociedade precisa se lembrar que a pobreza é gerada principalmente por ela mesma. Por que há tantas pessoas (16, 25, 36 milhões, dependendo do critério) sem condições de acessar seus direitos básicos? Fora as pessoas com impossibilidades privadas sérias, qualquer modelo de desenvolvimento tem por obrigação ampliar as capacidades de todos realizarem seu potencial. Educação pública, oportunidades de gerar renda e redução das brechas salariais são indicadores chaves na avaliação de sucesso de um modelo de desenvolvimento. A miséria é um indicador de problemas no modelo (econômico, social, cultural, etc.) de desenvolvimento. Antes de somente ausências de acessos desejáveis nos “pobres”, a pobreza diz respeito a presenças indesejáveis em todos (“pobres” inclusive).

3) Terceiro, a visão dos pobres como quem precisa receber não considera as riquezas deles. José de Souza Martins, em recente artigo (“A Miséria das Estatísticas”), acerca dos dados de renda, pergunta “Quem vai acreditar, em sã consciência, que quase 5 milhões de pessoas possam sobreviver sem renda alguma?”. Só quem não entende as outras economias. Esta concepção de gente SEM nada é também reforçada por critérios estatísticos internacionais e científicos, mas assim mesmo elitistas. Alguns preconceitos estatísticos que reforçam nossa visão de pobres como o grupo SEM:

a) A Idéia de família e moradia nas pesquisas oficiais não corresponde aos modelos de “instituição plurilocal baseada numa economia condominial”. Ou seja, a maioria daqueles que chamamos de pobres (e miseráveis) estão justamente em famílias que não classificamos como tais. Grupos que vão muito além dos primeiros graus de parentesco ou de partilha de um teto comum. “Casas” compostas por muitas unidades habitacionais. Analisar as unidades familiares de ajuda mútua que divergem dos padrões de classe média nos daria uma mirada distinta. Os pobres são mais “ricos” em família. E não enxergamos esta riqueza.

b) Renda. O IBGE (e o MDS) não computa outras formas de renda para a definição dos alvos dos seus programas. Agricultura de subsistência? Não consideramos renda. Troca de produtos e serviços entre vizinhos? Não consideramos renda. Essas formas de renda não são renda para a visão elitista. O que eles têm não conta na conta. O foco é na ausência. Para essa concepção, renda é somente o ganho em forma monetária. Em outras palavras, se não é dinheiro que circula no mercado e pode ser contabilizado no caixa de alguma empresa não é riqueza.
Com estas idéias sobre família e renda é fácil entender porque sempre as zonas rurais ou com culturas mais tradicionais (interiores e sertões) aparecem como as mais miseráveis em todo gráfico que se produz. Por outro lado, o apertado apartamento na periferia urbana de uma metrópole do sudeste, alugado onde uma mãe sozinha, longe de seus parentes e que mal conhece seus vizinhos, onde ela divide sua renda de R$800,00 com 3 filhos e um companheiro é considerada de classe C.

Por falar em classe C, um tema recorrente nas publicações econômicas recentes, sua emergência não pode ser atribuída somente ao aumento da renda. Nem as melhorias de clima e perspectivas observadas por pesquisas de comportamento podem ser integralmente atribuídas a esta tal emergência. Certamente a geração de quase 1.000.000 de empregos líquidos só neste ano, o aumento real do salário mínimo e os programas sociais contribui para o evidente avanço social. Mas, os economistas se debatem para tentar entender os porquês as melhoras parecem maiores do que os indicadores macroeconômicos sustentam. Principalmente a “nossa” crítica não compreende estas razoes. Parecemos surpresos de que os rendimentos dos mais pobres venham crescendo mais do que o PIB. A cartilha tradicional de explicações não dá conta. Porque é muito provável que na população mais pobre a melhora tenha seu melhor êxito justamente pelas características altamente positivas observadas neste grupo: o “caráter condominial da economia das famílias”, suas relações comunitárias, sua cultura rica e inovadora. Enfim, suas riquezas da dinâmica “poderosa de reinventar, compartilhar e ajudar”.

Resumo, as análises da miséria baseadas exclusivamente na concepção de Ausência desprezam: a cidadania dos que classificamos como pobres, os problemas do nosso modelo e desenvolvimento e as imensas riquezas das outras formas de convivência e economia que não as tradicionais de classe média.

A primeira miséria a ser erradicada é a dos nossos preconceitos.