quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Alepo é bem perto de Manaus

O jornal libanês Al-Nahar (tradicional periódico liberal e pacifista) publicou uma entrevista com um dos soldados sírios que participou ativamente da reconquista de Alepo. O jovem de 23 anos, identificado como Soldado X, ajudou a completar o trabalho realizado pelos bombardeios aéreos e terra-terra que mataram, junto com execuções centenas de civis não combatentes, inclusive crianças e idosos, em menos de 30 dias.

Questionado como ele se sentia e se tinha remorsos, X respondeu: “Sinto-me feliz por ter conseguido cumprir minha missão. Eu não matei gente. Eles não eram seres humanos. São traidores e suas famílias também traidoras. Mereciam a morte”. Eu e 99% da humanidade ficamos horrorizados com o comportamento brutal do Soldado X, seus colegas e comandantes.

Corta a imagem de Alepo. Abre em Manaus. COMPAJ, 60 mortos. A imagem das famílias gera compaixão. Afinal são mães, esposas, filhos. A incompetência corrupta do governo nos irrita. O avanço do crime organizado nos causa indignação. Compaixão pelas famílias, indignação com a gestão pública, etc... Mas, poucos seres humanos, entre os quais eu infelizmente não me incluo, ficaram comovidos pelas vítimas.

O que explica a indiferença pelos seres humanos presos é que não os consideramos como a gente. Não acreditamos que eles mereçam o mesmo sistema de justiça que nós ou aqueles a quem amamos. Criamos o que chamam de pseudodiferenciação. Inventamos uma diferença profunda para excluir, para poder classifica-los de “eles”. O governador resumiu bem a indiferença: “não havia santos entre as vítimas". E do lado de cá, há santos? Pela mesma lógica, não se lamentaria a morte do tal governador já que seu secretário foi pego negociando votos em troca de proteção da facção criminosa responsável pela matança.

Não aceitamos que presos tenham direito ao que a lei diz porque, como o Soldado X, não os vemos como iguais. E, ao considerar o outro como não-humano, todo comportamento desumano está justificado. Eu e os 99% dos que não choramos pelos mortos no COMPAJ se estivéssemos em Alepo, a despeito das declarações indignadas em redes sociais,  também teríamos participado da chacina de civis.


O Soldado X sou eu.


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

OS PRESENTES (DE GREGO) QUE DAMOS PARA AS CRIANÇAS

Gabi, a caçula da família faz 18 anos em alguns dias não haverá mais ninguém para ganhar presentes no Feliz Dia da Crianças (na definição da ONU, 0-17 aa), em casa.
Mas, há os presentes que eu (e todos os cidadãos adultos brasileiros, inclusive Gabi, em alguns dias) damos às crianças durante o restante do ano:

  1. ·         Crianças no Brasil são ainda 2 vezes mais pobres do que adultos (eram 4 xs há 15 anos). - - São 3,1 vezes mais vítimas da violência doméstica. 4.4 vezes mais vitimadas a violência armada.
  2. ·         Há 5 vezes mais juízes do trabalho (para cuidar de 32% da população do que de varas dedicadas à infância (41% da pop.). Crianças são condenadas à prisão (ou vc acredita que a Fundação Casa aplica medida socioeducativa?) por até 3 anos sem direito a um processo legal pleno.
  3. ·          Crianças recebem proporcionalmente menos da metade do investimento em saúde (41%)do que adultos.
  4. ·         A cada R$10,00 de incentivo para a cultura, apenas 0,61 são aplicados para atividades gratuitas dirigidas às crianças.
  5. ·         De cada R$10,00 de elisão fiscal, só R$2,85 são para beneficiar crianças.
  6. ·         Brinquedos pagam mais impostos (72,81%) do que carros (57,2%) e armas (71,2%) no Brasil.
  7. ·         Crianças são proporcionalmente mais vitimadas por: acidentes de trânsito (+1.6 vezes), violência interpessoal (+1,8) poluição ambiental (+2.3), mas não há nenhuma meta específica para crianças nas políticas nestas áreas.
  8. ·         Idosos recebem proporcionalmente 3,2 vezes mais investimentos sociais (Benefícios de Prestação Continuada + Investimento social direto).
Eu poderia seguir esta lista até o dia do título mundial do Santa Cruz. Mas, acho que você já pegou a ideia: a sociedade brasileira, o Estado, você, eu, o cara na mesa ao lado, todos participamos da discriminação contra crianças, e as tratamos como semi-cidadãs (se é que existe isto). Mesmo em menor proporção, esta segregação é verificada em praticamente todos os países do mundo.
Agora, coloque estes dados aí de cima entre parêntesis e multiplique pelo fator MACHISMO. Meninas sofrem ainda mais do que os meninos.
E de tão banal a discriminação, acabamos por acha-la natural. Não é.
De tão beneficiados como grupo dominante que somos, nós adultos racionalizamos. Relativizamos. Fugimos da realidade. Poderia dizer que negar a realidade é um comportamento "infantil". Mas, seria injusto com as crianças. Infantil é algo que nossa sociedade deveria ser e não é.
Pensamos que "a infância passa". Mas, não passa, fica nas estruturas. Uma sociedade que trata desigualmente às suas crianças, perpetua a injustiça, embrenha a desigualdade, reduz suas possibilidades de transformação positiva. Tratar desigualmente as crianças (e ainda mais desigualmente as meninas) é cavar, com seus próprios pés, o abismo onde a sociedade cairá.
Ao invés de nos transformarmos pelas crianças (sermos "como crianças"), transformamos as crianças em grupo explorado, garantimos a perpetuação do ciclo de injustiça.
Leis para beneficiar idosos todo mundo acha bonitinho. Beneficiar Criança para que? Se elas sobreviverem e chegarem a ser idosos, a gente protege.  O discurso fácil diz que é possível incluir sem mexer nos seus privilégios, sem dividir a conta. Não é.
Tratar as crianças com justiça representará quebrar os privilégios adultos/machistas. Mas, quem abre mão de privilégios?
Justiça para Crianças implica em aplicar prioritariamente o orçamento público a elas. Criar e fazer cumprir leis que as protejam e respeitem a especificidade. Valorizar, privilegiar, sobrepor o interesse da criança ao nosso. Tornar-se intolerante com a desigualdade e o preconceito aplicados a elas. E, sempre: dialogar com elas.
Infelizmente precisamos destes dias. Tem dia de tudo o que precisamos de um dia para lembrar. Daquilo que esquecemos nos outros 364/365. Daí não precisar de "Dia do homem branco-hetero de classe média". Todo dia já é dia do hegemônico.

Parafraseando o slogan de alguns ex-presidente: "Sociedade desenvolvida é Sociedade que não precisa de Dia das Crianças nem de Dia das Meninas"

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OS PRESENTES (DE GREGO) QUE DAMOS PARA AS CRIANÇAS

Gabi, a caçula da família faz 18 anos em alguns dias não haverá mais ninguém para ganhar presentes no Feliz Dia da Crianças (na definição da ONU, 0-17 aa), em casa.
Mas, há os presentes que eu (e todos os cidadãos adultos brasileiros, inclusive Gabi, em alguns dias) damos às crianças durante o restante do ano:

  1. ·         Crianças no Brasil são ainda 2 vezes mais pobres do que adultos (eram 4 xs há 15 anos). - - São 3,1 vezes mais vítimas da violência doméstica. 4.4 vezes mais vitimadas a violência armada.
  2. ·         Há 5 vezes mais juízes do trabalho (para cuidar de 32% da população do que de varas dedicadas à infância (41% da pop.). Crianças são condenadas à prisão (ou vc acredita que a Fundação Casa aplica medida socioeducativa?) por até 3 anos sem direito a um processo legal pleno.
  3. ·          Crianças recebem proporcionalmente menos da metade do investimento em saúde (41%)do que adultos.
  4. ·         A cada R$10,00 de incentivo para a cultura, apenas 0,61 são aplicados para atividades gratuitas dirigidas às crianças.
  5. ·         De cada R$10,00 de elisão fiscal, só R$2,85 são para beneficiar crianças.
  6. ·         Brinquedos pagam mais impostos (72,81%) do que carros (57,2%) e armas no Brasil.
  7. ·         Crianças são proporcionalmente mais vitimadas por: acidentes de trânsito (+1.6 vezes), violência interpessoal (+1,8) poluição ambiental (+2.3), mas não há nenhuma meta específica para crianças nas políticas nestas áreas.
  8. ·         Idosos recebem proporcionalmente 3,2 vezes mais investimentos sociais (Benefícios de Prestação Continuada + Investimento social direto).
Eu poderia seguir esta lista até o dia do título mundial do Santa Cruz. Mas, acho que você já pegou a ideia: a sociedade brasileira, o Estado, você, eu, o cara na mesa ao lado, todos participamos da discriminação contra crianças, e as tratamos como semi-cidadãs (se é que existe isto). Mesmo em menor proporção, esta segregação é verificada em praticamente todos os países do mundo.
Agora, coloque estes dados aí de cima entre parêntesis e multiplique pelo fator MACHISMO. Meninas sofrem ainda mais do que os meninos.
E de tão banal a discriminação, acabamos por acha-la natural. Não é.
De tão beneficiados como grupo dominante que somos, nós adultos racionalizamos. Relativizamos. Fugimos da realidade. Poderia dizer que negar a realidade é um comportamento "infantil". Mas, seria injusto com as crianças. Infantil é algo que nossa sociedade deveria ser e não é.
Pensamos que "a infância passa". Mas, não passa, fica nas estruturas. Uma sociedade que trata desigualmente às suas crianças, perpetua a injustiça, embrenha a desigualdade, reduz suas possibilidades de transformação positiva. Tratar desigualmente as crianças (e ainda mais desigualmente as meninas) é cavar, com seus próprios pés, o abismo onde a sociedade cairá.
Ao invés de nos transformarmos pelas crianças (sermos "como crianças"), transformamos as crianças em grupo explorado, garantimos a perpetuação do ciclo de injustiça.
Leis para beneficiar idosos todo mundo acha bonitinho. Beneficiar Criança para que? Se elas sobreviverem e chegarem a ser idosos, a gente protege.  O discurso fácil diz que é possível incluir sem mexer nos seus privilégios, sem dividir a conta. Não é.
Tratar as crianças com justiça representará quebrar os privilégios adultos/machistas. Mas, quem abre mão de privilégios?
Justiça para Crianças implica em aplicar prioritariamente o orçamento público a elas. Criar e fazer cumprir leis que as protejam e respeitem a especificidade. Valorizar, privilegiar, sobrepor o interesse da criança ao nosso. Tornar-se intolerante com a desigualdade e o preconceito aplicados a elas. E, sempre: dialogar com elas.
Infelizmente precisamos destes dias. Tem dia de tudo o que precisamos de um dia para lembrar. Daquilo que esquecemos nos outros 364/365. Daí não precisar de "Dia do homem branco-hetero de classe média". Todo dia já é dia do hegemônico.

Parafraseando o slogan de alguns ex-presidente: "Sociedade desenvolvida é Sociedade que não precisa de Dia das Crianças nem de Dia das Meninas"

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segunda-feira, 27 de junho de 2016

TODO DADO SERVE PARA QUEM TEM A CONCLUSÃO PRONTA

O texto abaixo, FSP 27/6/16, é um bom exemplo de preconceito e ideologia disfarçados de pesquisa. O texto quer, usando um estudo feito pelo terrivelmente anti-ECA MP de São Paulo, convencer o leitor de uma coisa: a culpa é principalmente da família (logo, não é minha, nem sua, nem do Estado). Vamos ao jogo dos 7 erros:

1.      Chama os adolescentes em conflito com a lei de “menores infratores”. Isto não é um problema semântico. É ideológico. Menor é MENOS (do que adulto) e infrator é aquele que é unilateralmente CULPADO (mesmo q não seja responsável), i.e., não há problema na lei, há em quem a quebra.
2.      Nenhum dos dados é comparado à média geral. Ou seja, não se comparam com os dados dos “não-infratores”. E As categorias são propositalmente agrupadas para reforçar a conclusão (ou tese, já existente, antes do dado).
3.      Por exemplo, ao dizer que 66,10% dos “infratores” vêm de famílias com renda de 1-5 SM quer te convencer que infração está associada à pobreza. Mas, é mentira porque 61,5% da população em geral (todos nós) está entre 1-5 SMs. O corte certo seria 1-2 SMs (pobreza). Mas ele foi estendido propositalmente no gráfico para dar um IMPACTO.
4.      Para construir a manchete (e dizer que 2 em 3...), eles SOMAM e igualam Pai Sem Contato + Pai Separado c/Contato + Órfãos de pai. Isto para nos convencer que estas categorias são iguais, de que qualquer coisa fora “família de comercial de margarina” é o mesmo que nada. O dado omite adolescentes que vivam com “pais substitutos”(companheiros das mães, padrastos) Enquanto se sabe que presença e ausência de afetividade são questões difíceis de serem atribuídas assim.
5.      Vamos usar o critério deles para a população em geral e ainda assim a conclusão não se sustenta. 41% dos adolescentes brasileiros hoje vive em um arranjo familiar não convencional (embora a direita conservadora religiosa insista em dizer que o “normal”, isso é, o que mais se repete é o comercial de margarina.), mas (ponderando renda) apenas 0,32% deles têm conflitos com a lei contra 0,28% nos lares tradicionais. Ou seja, isto não explica. Não há causalidade, no máximo são fatores concorrentes (acontecem juntos e um potencializa o outro).
6.      No item “antecedentes” é feita para dar a impressão de que 36% dos adolescentes tem “bandidos” na família. O MP não faz este tipo de levantamento, ou seja, este dado é “declaratório”. Isto não bate com nenhum dos únicos 2 levantamentos “documentais” feitos, o últ9imo em 2012, pelo MJ. Nestes se confirma que apenas 28% dos adolescentes têm contato direto com familiares com antecedentes
7.      Embora o levantamento queira ser extrapolado a todos os adolescentes em conflito com a lei, apenas 18% dos questionários foi aplicado aos que não foram internados. Isto é, os resultados são distorcidos pelo grupo com conflitos mais sérios.

Ser bem tratado, acompanhado por uma família (no formato que seja) é um direito de toda criança e todos os dados que temos reforçam que este bem trato diminuem nossas chances de problemas na vida. Mas, reduzir o fenômeno dos meninos encarcerados a seus pais, à sua renda é miopia auto infringida.

No fundo a única coisa totalmente precisa na matéria é a frase do Professor Alvino “Todo mundo só o (adolescente) enxerga como inimigo, como bandido, e ele acaba necessariamente se enxergando como inimigo."

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2 em 3 menores infratores não têm pai dentro de casa


FABRÍCIO LOBEL
ROGÉRIO PAGNAN

Cansado de ver a mãe agredida pelo padrasto, o estudante Filiphe Gomes, aos 12 anos, decidiu enfrentar um adulto violento. Puxou uma faca e disse que não aceitaria mais aquilo.
A tragédia de Filiphe foi ver a mãe tomar o lado do marido. Foi o impulso que faltava para que fosse morar na rua, debaixo do viaduto do Chá, no centro da capital paulista. Não demorou para ganhar más companhias e, na sequência, um novo abrigo: a Fundação Casa, após um assalto à mão armada.
Filho de uma família desestruturada, de baixa renda e baixa escolaridade, Filiphe, hoje o MC Cafuzo, dá vida a números de um levantamento inédito do Ministério Público de São Paulo. Segundo o relatório, dois em cada três jovens infratores vêm de famílias que não têm o pai dentro de casa.


O estudo leva em conta cerca de 1.500 jovens entre 12 e 18 anos que cometeram delitos na cidade de São Paulo entre 2014 e 2015. Desse universo, 42% dos jovens, além de não viver com o pai, não tinham nenhum contato com ele.
Ainda segundo os dados, 37% dos jovens entrevistados têm parentes com antecedentes criminais, o que pode indicar uma influência negativa dentro da própria casa. "Pela experiência, é possível dizer que uma família funcional e presente, seja qual for sua configuração, é o primeiro sistema de freios que um jovem terá sobre suas condutas", diz o promotor Eduardo Del-Campo, que durante um ano catalogou casos de menores infratores.
"Vi meu pai duas vezes na vida. E é nítido quanto peso a ausência dele teve psicologicamente", diz MC Cafuzo, hoje com 24 anos e pai de uma menina de dois. Desde os seis anos de idade, ele e os dois irmãos mais velhos tomavam conta de casa, já que a mãe, auxiliar de enfermagem, fazia jornada dupla –além de trabalhar, estudava para ser enfermeira.
"Ela saía às 6h da manhã e voltava às 23h. Eu ia para a escola de manhã, voltava pra casa e tinha que cuidar das tarefas domésticas. No intervalo disso, a gente ia para a rua", conta ele. Foi na rua onde teve o primeiro contato com o crime. Começou com furtos e logo estava no tráfico.

EDUCAÇÃO
Segundo o promotor, além da família, outro sistema de freio à entrada de crianças na atividade criminosa é a escola, que sofre com a evasão de alunos e é pouco atrativa. De acordo com a pesquisa, apenas 57% dos adolescentes infratores estudam. "Mesmo que o jovem esteja na escola, é preciso entender também qual o grau de instrução que está tendo", diz o promotor.
A falta de interesse foi citada por 38% dos jovens que abandonaram as aulas. Esse dado é confirmado pela experiência de Cafuzo. "Fiz até a 8ª série [atual 9º ano]. Mas eu ia só para merendar, jogar bola, namorar e conversar com os amigos. A aula sempre foi muito desinteressante para mim."
Para Del-Campo, são necessárias políticas públicas para evitar que os jovens entrem no crime. "Educação, prática esportiva, aulas culturais, cada um desses elementos serve como uma base de códigos para que o jovem saiba como se portar em sociedade."
Cafuzo conta que seu "código de conduta" só chegou com a descoberta do significado do rap, durante sua internação na Fundação Casa. "O rap foi o que me salvou, foi os meus livros de história. O rap me ensinou que o crime era a nossa realidade, mas a gente não poderia aceitar aquilo como a nossa única saída", diz ele.


AUSÊNCIA
Especialistas ouvidos pela Folha afirmam que a derrocada da vida de um adolescente –a ponto de levá-lo para o crime– começa quando, ainda criança, ele perde os vínculos positivos e passa a sofrer privação emocional. Os vínculos positivos não precisam ser necessariamente com as figuras paterna e materna, mas eles são absolutamente necessários.
"Precisa haver esses vínculos. Seja com o pai, seja com a mãe, com o professor, amigo. Ou os vínculos serão feitos com indivíduos ligados à delinquência", diz o professor Sérgio Kodato, coordenador do Observatório da Violência e Práticas Exemplares da USP Ribeirão Preto.
Ele elogia os programas existentes nos EUA que colocam uma espécie de padrinho para acompanhar menores infratores. "É um cara que vai levá-lo para casa, vai estabelecer um vínculo. Vai arrumar uma atividade ou um emprego, acompanhá-lo na escola."

O professor de criminologia clínica da Faculdade de Direito da USP, Alvino Augusto de Sá, também considera nociva a forma como a sociedade –incluindo a Justiça– trata os infratores. "Todo mundo só o enxerga como inimigo, como bandido, e ele acaba necessariamente se enxergando como inimigo."






segunda-feira, 11 de abril de 2016

Mesmo com salto de Qualidade Inter geracional, só 22% dos que chegam ao ensino superior no país são proficientes em leitura e matemática. E isto Ainda é Melhor do que era Antes...

por A.Gois


No Brasil, apenas 22% das pessoas que chegaram ao ensino superior têm nível de alfabetismo que possa ser classificado como proficiente. Outros 42% estariam num grupo intermediário. Mas o que mais preocupa é a constatação de que 32% de nossa elite educacional têm domínios apenas elementares de habilidades de leitura, escrita e realização de cálculos aplicados ao cotidiano, sendo que 4% podem ser inclusive chamados de analfabetos funcionais. Esses são dados do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional), realizado pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa, com apoio do Ibope Inteligência.

  • Se são 4% os analfabetos funcionais com ensino superior completo ou incompleto, em toda a população de 15 a 64 anos a proporção é de 27%. 
  • Considerando apenas o grupo de jovens e adultos com escolaridade precária por terem parado de estudar antes de completar o primeiro ciclo do ensino fundamental, a proporção salta a 68%.



NÍVEL DE ALFABETISMO DA POPULAÇÃO JOVEM E ADULTA


A constatação de que há forte relação entre a escolaridade e o nível de alfabetismo não mascara sérios problemas que temos até na educação superior. Segundo Ana Lúcia Lima, diretora-executiva do Instituto Paulo Montenegro, o esperado no caso dos brasileiros que ao menos chegaram ao ensino superior é que tivéssemos perto de 100% dessa população divididos entre os níveis proficiente ou intermediário. 
  • O percentual nesses dois grupos, porém, soma apenas 64%, sendo que a menor parte (22%) estaria no nível proficiente, o que significa que são capazes de elaborar textos de alta complexidade e interpretar tabelas e gráficos envolvendo mais de duas variáveis. 
  • No nível intermediário (44% do grupo que chegou ao superior), é esperado que a pessoa saiba resolver problemas envolvendo cálculos de porcentagens e proporções mais complexos e interpretar e elaborar sínteses de textos narrativos, jornalísticos ou científicos.


Uma conclusão equivocada desses números seria dizer que o problema está numa nova geração, que chega ou sai do ensino superior com nível de alfabetismo muito pior do que o verificado em outras gerações. 
  •  Entre a população com mais de 50 anos e com nível superior completo ou incompleto, 11% são proficientes e 42% estariam no grupo intermediário. 
  • No caso dos que têm menos de 24 anos, são 22% de proficientes e 49% de intermediários, sendo que nesse grupo muitos ainda estão estudando e podem melhorar seus indicadores de alfabetismo.


Há também boas notícias, como a existência de um salto geracional significativo, especialmente para aqueles que, partindo de famílias com baixa ou nenhuma escolaridade, conseguem chegar ao ensino superior. 
  • Entre aqueles que chegaram à universidade e tinham pais que também haviam ao menos frequentado o ensino superior, 27% são proficientes e 41% ficam no grupo intermediário. 
  • Entre aqueles que conseguiram dar um grande salto entre gerações (pessoas que chegaram ao ensino superior mesmo tendo pais que sequer completaram o ensino primário), 14% são proficientes e 50% estão no nível intermediário. 



Para Ana Lúcia Lima, embora persistam diferenças entre os dois grupos em termos de domínio de habilidades de alfabetismo, essas diferenças são certamente menores do que aquelas que seriam verificadas na geração de seus pais. O fato de os dois grupos não estarem tão distantes assim indica que chegar ao ensino superior dá às pessoas que vêm de uma origem familiar pouco escolarizada uma boa chance de acessarem oportunidades com as quais seus pais nem sonhariam.

P.S: Pesquisa ainda inédita.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Conversa “de Maior”



O tema da redução da maioridade penal é recorrente, desde que há 27 anos, o Artigo 228 da Constituição, cravou em 18 anos a idade mínima para a imputabilidade penal. Mas, nas últimas semanas, graças ao avanço de um projeto neste sentido, o tema voltou às manchetes e aos “trendtopics”. E é bom que este tema esteja na pauta do dia. A  vida dos adolescentes e a segurança da sociedade merecem atenção.

Os lados estão claramente definidos. Os contrários à redução defendem a manutenção da constituição e da Lei nº 8.069/90 (o Estatuto da Criança e do Adolescente, E.C.A.). Eles veem a alteração como retrocesso nos Direitos dos Adolescentes, principalmente aos mais pobres. Creem que a redução seria mais uma manifestação de injustiça social. Os favoráveis creem que a lei precisa ser atualizada e desfiam muitos argumentos, que podem ser resumidos em três afirmações principais: atualmente os adolescentes são impunes; a imputabilidade reduz a criminalidade e; um adolescente de 16 anos tem consciência do que faz.

Vamos ao primeiro argumento: os adolescentes são impunes. Aqui há uma confusão entre inimputabilidade e impunidade. Adolescentes são inimputáveis penalmente. Mas, ao contrário do senso comum, eles são punidos mais vezes e com mais rigor do que adultos. O E.C.A. dá o poder ao Estado de restringir a liberdade, que é um eufemismo para encarcerar, de um adolescente por até 36 meses. Isto sem um rito processual cuidadoso como o aplicado a adultos, sem um julgamento, sem direito à progressão de pena e, muitas vezes, sem contraditório. Para efeito de comparação, apenas 16% das pessoas condenadas criminalmente no Brasil fica mais de 36 meses presa. No caso dos adolescentes, 28% das sentenças determinam a internação máxima; mesmo que menos de 20% dos atos infracionais correspondam a crimes violentos. Além de serem comumente punidos com mais rigor, os processos instruídos pela polícia contra adolescentes são muito mais débeis e ainda assim recebidos do que os dos adultos. Um levantamento, feito na Justiça paulista, constatou que das denúncias apresentadas contra adolescentes, apenas 26% têm perícias técnicas e 68% nenhum ou apenas um depoimento arrolado. Enquanto, as mesmas denúncias contra adultos, 61% têm perícias e 78% contam com mais de um depoimento corroborativo. O baixo rigor exigido nas denúncias contra adolescentes, fazem deles os sujeitos ideais para a autoridade policial aumentar seu índice de sucesso. Resumo, adolescentes são facilmente condenados no Brasil e a penas maiores do que seus pares adultos.

A segunda crença é a de que a imputabilidade previne o crime. Teoria perfeita, talvez na Noruega. Mas, não se sustenta nos dados daqui. No Brasil, mesmo com a imputabilidade, o crime compensa para os adultos. Um exemplo: por ano, são mais de 50 mil mortes no país. E os casos em que os crimes são solucionados não chegam sequer a 8%. E meros 5,2% chegam a uma sentença. No final, somente 4% dos homicídios acarreará prisão para seus perpetradores. Nos outros crimes a situação não é muito diferente. Em 2014, o Brasil tinha mais de 600 mil mandatos de prisão não cumpridos. Em parte até porque faltam, segundo o próprio Ministério da Justiça, 200 mil vagas no sistema prisional brasileiro. O sistema atual estimula a impunidade dos que adultos e não faria diferente com os adolescentes. É ilógico defender a extensão para os adolescentes de um Sistema Prisional falido, cujo caráter vingativo só piora a segurança pública.

O terceiro axioma: o da consciência dos atos. Um adolescente de 16 anos teria idade suficiente para saber o que faz. Provavelmente tenha mesmo. Porém, a fixação da idade para o envio a um sistema prisional especial (como o atualmente imposto aos adolescentes) não se justifica primariamente na consciência do ato. A razão é definir uma idade até a qual a sociedade crê que seja mais importante recuperar do que punir.  O principal objetivo do sistema prisional é a punição, uma retribuição do mal. Esta compensaria o erro, reequilibraria a balança da justiça. A pena é um tipo de pagamento (“olho por olho”; ou “olho por 12 anos de prisão”) no sistema prisional adulto. Na prática, a recuperação é um produto secundário. Se acontecer, melhor mas não é o objetivo. Mas, um sistema prisional juvenil (este é o nome real das “fundações” onde internamos os adolescentes) se baseia justamente na inversão do primado da punição. A recuperação social passa a ser o principal objetivo e não a compensação punitiva. Os sistemas prisionais diferenciados para adolescentes e jovens (existentes em todos os 20 primeiros ocupantes da lista do IDH) não fazem isto por conta da bondade da sociedade, mas por um cálculo simples: quanto mais jovem, mais possível é a correção de comportamentos + quanto mais jovem, mais tempo para um recuperado “reparar” a sociedade, através de uma vida produtiva para si e para sua comunidade, depois que terminar o tempo de prisão. O sistema diferenciado não é baseado em consciência do ato, mas em na busca do melhor para a sociedade, uma racionalidade econômico-social.

Tratados estes três axiomas dos defensores da redução, precisamos elevar o nível do debate. Mesmo os defensores da manutenção da idade penal reconhecem que o atual sistema real (não o da letra da lei) não funciona nem para a sociedade, nem para os adolescentes.  Ele é baseado em uma dupla estratégia orgânica (não escrita): Abusar e/ou Exterminar.

A estratégia do Abuso é construída fora e dentro do interior do sistema de “medidas socioeducativas”. Tratados como bandidos em potencial, adolescentes pobres são estigmatizados, perseguidos, calados e vilipendiados cotidianamente. Ao invés de punir a sociedade que nega os direitos, são os adolescentes os punidos. E, quando acusados de crimes, entram em um caminho com raro retorno. Em São Paulo (desconheço se há dados para o restante do país), 6 adolescentes em cada 10 egressos do “sistema prisional juvenil” estarão às voltas com o sistema penal adulto, depois de chegar à maioridade. Contados nos "4" que “escapam” de voltar à cadeia, estão os que morrem antes (1 em cada 10).  E alguns poucos que, por uma confluência de fatores positivos que podemos chamar de “milagre”, conseguem superar não só as condições (psicológicas, familiares, econômicas, etc.) e preconceitos (geográficos, raciais, etc.) que os levaram a serem presos, mas também as injustiças, o abandono, os estupros (que vitimam 38% dos internos) e demais violências sofridas na penitenciária juvenil.  Política pública não pode depender de “milagre”. O atual sistema não funciona. Mesmo que na letra do ECA ele seja inspirado nos Direitos dos Adolescentes, e tenha um nome bonito de “medidas socioeducativas”, ele é um sistema penal caro, cruel e ineficaz.

A Estratégia do Extermínio é evidenciada na vergonhosa epidemia de homicídios de adolescentes. A cada ano, quase 10.000 adolescentes são assassinados. Os dados para comprovar o viés da violência contra adolescentes são abundantes. A polícia brasileira, a que mais mata no mundo, é ainda mais violenta com os adolescentes. 42% dos homicídios de adolescentes são cometidos pelo próprio Estado. Ser adolescente é ter mais chance de ser morto pela polícia.

Uma equivocada e indesejada redução da maioridade penal seria inócua para a sociedade, porque não a faria mais segura. Por outro lado, a manutenção da idade penal, sem mudanças profundas no sistema tanto repressor quanto penal, não impedirá que os adolescentes continuem a ser abusados e exterminados.  

Assim, muito além do debate 16 X 18, precisamos acelerar iniciativas como: o Projeto de Lei 4471/12 (que cria regras rigorosas para a apuração de mortes e lesões corporais decorrentes da ação de agentes do Estado, como policiais), o aperfeiçoamento do rito processual para garantir tratamento justo aos adolescentes e a reforma completa do sistema de medidas sócio educativas, hoje um horrendo sistema prisional juvenil (para transforma-lo em um instrumento de recuperação).   

O debate é bom, por isto é hora de movê-lo para onde o problema está: na necessidade de promover segurança com justiça. Parafraseando um slogan politico: Sociedade Justa é Sociedade Segura.

Texto originalmente Publicado no Boletim "O São Francisco", da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1/4/2015.


Fontes:
1.     Mapa da Violência: Os Jovens do Brasil, SGPR, 2014.
2.     Justiça Paulista, Adolescência e Juventude, NEV-USP, SEADE, 2013.
3.     Conselho Nacional de Justiça, 2013.
4.     Anuário de Segurança Pública, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2014.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

DONA CIDA E O BOLSA-FAMÍLIA: A CRÍTICA DO BETO


No dia seguinte ao nosso 11/9, o massacre de 7X1, reencontrei Dona Cida, uma antiga vizinha de minha mãe, que não via há uma década ou mais, passeando no parque. Protocolarmente perguntei como ia. O pior aconteceu, ela respondeu. Disse que ia bem, mas reclamou do Imposto de Renda da pensão que recebe do marido, “o Major”, militar morto há mais de 20 anos. Disse que estava difícil manter empregada porque tem muitos vagabundos que recebem Bolsa-Família (BF) sustentados por ela,  etc. Já desejando outros 10 anos sem ver Dona Cida, mudei de assunto. Está muito triste com o vexame de ontem? Ela me disse: Que nada! Estou é feliz pelo Beto, meu chihuahua. Imagina o stress dele? A cada rojão por gol da seleção era um terror! Já via a hora que ele ficaria viciado em calmante.  Desde ontem, tudo em paz, lá em casa.

Sempre há uma perspectiva Beto de um tema. Inclusive o BF.  Em toda época eleitoral, “Donas Cidas” repetem papagaiamente os truísmos sobre o programa: “É esmola, é muleta, eu quem pago por isto, etc.”.

As “Donas Cidas” têm diversos tipos de argumentos contra o BF. Algumas (poucas o admitem publicamente) simplesmente não aceitam que um pobre possa se beneficiar. Outras têm argumentação mais sofisticada. Tem “Dona Cida” que diz que:
  1. O BF é esmola. Mesmo que os dados mostrem que 8 em cada 10 beneficiários trabalhem.
  2. O BF representa um gasto grande. Mesmo que os dados provem que o retorno é de 3X1 por $ publico gasto (retorno em impostos, maximização da eficiência de investimentos públicos, redução de demandas, geração de riquezas, etc.) e que o custo total corresponde a 6% da conta de juros.
  3.  O BF deveria ter uma porta de saída. Os candidatos da oposição são este tipo de “Dona Cida”, porque dizem que o BF não promove o desenvolvimento dos beneficiários; mesmo que já haja uma miríade de programas neste sentido, e 18% dos beneficiários a cada ano saiam do programa, por aumento de renda. Isto é, a tal porta de saída já existe e tem gente passando por ela. Embora, a porta de saída seja também de entrada. E novos por ela cheguem e outros, outrora saídos, por ela retornem.

Com esse nível de argumentos das “Donas Cidas”, é fácil entender porque o BF segue um sucesso inquestionável :-).

Arrisco a dizer que a fraqueza dos argumentos das “Donas Cidas” vêm porque constroem suas críticas a partir do ponto de vista de que beneficiários são os que recebem o benefício.

Por isto (eu, um defensor do programa, por acreditar que Assistência é Direito e porque não conhecer nada mais eficiente e viável na escala que o Brasil demanda), quero propor uma crítica sob a “perspectiva do Beto”, outro lado. Algo que a Dona Cida original entenderia.

A crítica se origina na pergunta: Se 8 em cada 10 beneficiários trabalha e se 6 em cada 10 tem um emprego formal, por que eles precisam de um programa de complementação de renda? 

A resposta simples é porque os salários pagos são muito baixos. Portanto, depois de 10 anos de uma implementação encorpada, com as mudanças na economia do país e no perfil dos beneficiários, s que os maiores beneficiários do BF hoje não são mais os inscritos no programa, mas os empregadores brasileiros.

O BF pode ser considerado um subsídio para o empregador brasileiro. Mais uma “Bolsa-Rico”, que complementa os já existentes benefícios sociais a não-pobres: Bolsa-Botox (incentivo fiscal para gastos com saúde privada, de qualquer tipo e sem limite); Bolsa-Cirque-Du-Soleil (incentivo fiscal para investimentos em produtos culturais caros e destinados a uma pequeníssima parcela da população), Bolsa-Carro Zero (incentivo IPI); Bolsa-Viuvinha (Pagamento de pensão vitalícia para viúvas de segundos matrimônios para servidores públicos federais, como a que deixou o “Major” do Dona Cida, ), Bolsa-Safena (isenção de Impostos para idosos, mesmo ricos, desde que tenham laudo de doença grave, mesmo que não fatal) o Bolsa-CBF (isenções, renegociações eternas de dívidas, etc.); Bolsa-Friboi (subsídios em empréstimos ao agronegócio); o Bolsa-Férias (pagamento de salário-desemprego, mesmo que em um limite, para trabalhadores de classe média e alta classe média); Bolsa-Aposentadoria (aposentasoria integral para servidores que nao contribuem nem 69% do que deveriam); Bolsa-CarroAdaptado (isenção fiscal para pessoas ricas com algum problema de mobilidade em carros automáticos),etc. O Estado brasileiro é historicamente pródigo com quem não precisa, justamente com as “Donas Cidas”.

O BF pode ser visto como um mecanismo que faz o erário pagar uma parcela necessária e não paga pelo patrão. É como se todos fôssemos sócios desses patrões. Pelo Ponto de vista de Beto, percebo que sou sócio da senhora do outro lado, com cara de entojo, provavelmente amiga da “Dona Cida”, que trata com indiferença de senhora de engenho, o atendente da padaria que a serve.  Sócio involuntário dela e do patrão do atendente mal tratado.

Beto explica: A amiga da “Dona Cida”, evidentemente partícipe da elite, certamente emprega uma mensalista. Imaginemos que a mensalista fosse casada com o ajudante mal tratado, que eles ganhem a média mínima para as funções que desempenham e que tenham dois filhos em idade escolar (a média para um casal da renda/idade/cidade deles).

O problema é que mesmo empregados formalmente e ganhando um pouco acima do mínimo nominal (a média em SP par estas funções é de R$882,00/mês), o rendimento total combinado deste casal (incluídos aqui Vale-transporte, 13º, 1/3 de férias e PIS/PASEP, auxílios, etc.) corresponde a somente 52% das necessidades da família (critério DIEESE).  Se eles acessam o BF (e os demais programas de transferência de renda, aqui incluídos na análise) aos quais eles têm direito, seu rendimento aumentaria em R$ 368,70/mês. Como resultado, eles teriam alcançado somente 65% da renda necessária para viverem dignamente em São Paulo.

Portanto, o que o BF faz é minimizar (nem compensa totalmente) o impacto do baixo valor do Salário e assim subsidiar os empregadores. Assim, se o BF é muleta o é principalmente do empregador brasileiro.

“Dona Cida” pode contra argumentar que o BF subsidia os salários porque eles são pesadamente taxados no Brasil. “Dona Cida” tem razão quando diz que há um “salário oculto”, pago pelo empregador. Mas, se descontarmos o que na verdade é transferência ao próprio empregado (INSS, FGTS, PIS, 13º, férias, Vale transporte, Auxilio Alimentação, Auxilio-Creche etc.), a taxação direta sobre o salário não passa de 20%. (I (inferior à média da OCDE).Assim, mesmo com o “custo empregado”, o salário pago ainda seria bem inferior ao necessário.

Os defensores do BF argumentam que ele tem um documentado impacto positivo do BF sobre a média salarial. E que, com o crescimento da renda média, este subsídio aos salários tende a se extinguir. Isto seria verdade, desde que a Economia crescesse constantemente e a proporção da massa salarial na renda também. Porém, há extensa documentação de que toda Economia entra em desaceleração (às vezes também em recessão) periodicamente e, nestes períodos, achata a massa salarial e recompõe as taxas de lucro do capital investido. Este processo já começou no Brasil, depois do ciclo de crescimento anterior. Isto aponta para dizer que o BF, se depender só do crescimento econômico, seguirá subsidiando o dono da padaria, “Dona Cida” e suas amigas, ainda por muito tempo.  

Não é possível aumentar salários somente pelo Mercado, nem tão pouco na caneta, por decreto.  Isto não quer dizer que não haja uma responsabilidade na política de aumento real do SM, e em uma legislação que privilegie o salário. Também se sabe que os empregadores não podem responsabilizar os baixos salários exclusivamente ao mercado, ao contexto e internacional, nem ao nível global de preços nem tão pouco à cotação do rabanete na Bolsa de Chicago. Há que aplicar outros mecanismos. Mas, isto é tema para outra reflexão de Beto. Hoje o tema é o BF.

Assim, a única porta de saída do BF é um salário suficiente para as necessidades. Quando isto acontecer, o programa poderá ficar restrito aos que necessitam de Assistência, algo em torno de 40% dos atualmente atendidos.


Enquanto este dia não vem, as “Donas Cidas” seguirão os principais beneficiários do BF. E, já que sou sócio do dono, vou pedir desconto no pão na chapa. Não é Beto? Au, Au, Au



TAREFA E BIBLIOGRAFIA: VIDE SITE-> DESENVOLVIMENTO DO CURSO->TAREFAS COMPLEMENTARES


quinta-feira, 27 de março de 2014

CUIDADO: OS GRÁFICOS A SEGUIR PROVOCAM ASSASSINATOS, ESTUPROS, SEGREGAÇÃO, ETC.




Gráficos abomináveis,  que mostram que a violência contra mulheres (e homossexuais) é a manifestação tópica de preconceitos e conceitos dos mais distorcidos, inumanos.
Pesquisa IPEA de Percepçao Social, entrevistou 3810 pessoas, em uma amostragem com menor margem de erro que das principais enquetes de intenção de voto.
É ver, horrorizar-se e pensar: Como mudar isto?

O estudo todo














quarta-feira, 5 de março de 2014

As Notícias da Morte do Movimento Popular são um pouco Exageradas



Ciência é demolidora de consensos. Boa ciência serve para desdizer o que o senso comum, a timeline do facebook e a torcida do flamengo pensam ser verdade. E ciência da boa tem feito o mexicano abrasileirado, Gurza Lavalle (CEM, FFLCH-USP), brilhante herdeiro do tema de participação e movimentos sociais, na minha querida FFLCH.


Nos últimos 30 anos, os movimentos sociais, principalmente os da América Latina, foram muito estudados. Geralmente são identificados como atores essenciais nos processos de democratização. Seu desenvolvimento posterior à volta das eleições no continente, também é visto como uma evidência (causa ou reflexo, dependendo do analista) de uma suposta decadência democrática ou de uma “pós-democratização”, na qual a ação política se tornaria somente instrumental, neo-clientelista ou de "consumismo de bens públicos".

E 5 de cada 4 pesquisadores :-), parece identificar que, a partir dos anos 1990, houve uma mudança da sociedade civil e que ela se deu de forma substitutiva – isto é, com certos tipos de atores tomando o lugar de outros. Isso teria culminado, a partir de meados dos 90, numa preponderância das organizações não governamentais (ONGs), deslocamento que ficou conhecido como “onguização” dos movimentos sociais.

Associados à "Onguização", a maioria dos analistas identifica uma decadência (mais forte neste século) na capacidade de articulação e protagonismo politico dos movimentos. Tornou-se comum um “blues” de quando os movimentos populares eram ativos e fortes. Igual aos rubro-negros saudosos do time de Zico-Júnior :-) A tônica comum nas análises segue o consenso de que os movimentos populares, formados pelos próprios interessados nas demandas de mudança, teriam cedido espaço para organizações que também defendem mudanças, mas em nome de grupos que não são seus membros constituintes (Advocacy, na terminologia das ciências sociais). Essas ações supostamente teriam gerado uma despolitização da sociedade civil.

A pesquisa de Lavalle e equipe desmentem a tese da "Onguização".  Ele não entra no debate do que é ONG (este nome genérico, quase uma ficção linguística que coloca no mesmo saco gatos tão distintos quanto o Hospital Albert Einstein, o Asilo  Kardecista, a Consultoria disfarçada de ONG e a Associação dos Colecionadores de Carrinhos de Rolimã). Porém empresta da literatura tradicional a ideia da evolução dos atores sociais em  ondas distintas.  A 1ª onda seria a das organizações tradicionais, como as entidades assistenciais ou as associações de bairro (criadas em razão de demandas sociais de segmentos amplos da população, maiormente durante a vigência da ditadura). A 2ª onda, na qual as costumam ser agrupadas as organizações denominadas de ONGs e que, por sua vez deram origem às entidades articuladoras, aquelas que trabalham para outras organizações, e não para indivíduos, segmentos da população ou movimentos localizados).

A pesquisa utiliza como aproximação aos “movimentos sociais” são organizações populares, “entidades cuja estratégia de atuação distintiva é a mobilização popular”, como o Movimento de Moradia do Centro, a Unificação de Lutas de Cortiços e, numa escala bem maior, o Movimento dos Sem-Terra. Estas, na rede, estão em pé de igualdade com as ONGs e as articuladoras. Numa posição de “centralidade intermediária” estão as pastorais, os fóruns e as associações assistenciais. Finalmente, em condição periférica, estão organizações de corte tradicional, como as associações de bairro e comunitárias.

Em grande parte, a novidade da pesquisa se deve à aplicação de novas ferramentas, baseadas na análise de redes. A "Network Analysis" uma abordagem usada amplamente em Ecologia, Epidemiologia e Linguística. Ela detecta padrões de difusão, permite identificar estruturas indiretas e conexões. Assim, Lavalle e equipe começaram a superar as visões baseadas em abstrações ou em modelos teóricos mais ortodoxos do que o sistema de defesa de técnico gaúcho..

O método usado pela equipe para verificar a estrutura de vínculos entre as organizações foi o "bola de neve". Neste, cada entidade foi chamada a citar cinco outras organizações importantes no andamento do trabalho da entidade entrevistada. Adicionou-se a esta lista declaratória, as relações institucionais e financeiras.  Na cidade de São Paulo foram ouvidos representantes de 202 associações civis (as do tipo da primeira onda, excluindo portanto as "ONG's"), que geraram um total de 827 atores diferentes, 1.368 vínculos e 549.081 relações potenciais.

Quando analisadas as conexões, foi possível avaliar a influência das associações, tanto na sociedade civil quanto em relação a outros atores sociais e políticos. Esse resultado foi obtido por um conjunto de medidas que computam os vínculos no interior da rede, não só aqueles diretos ou de vizinhança, mas, sobretudo, aqueles indiretos ou entre uma organização e os vínculos de outra organização com a qual a primeira interage e aos quais não tem acesso direto. Assim, foi possível investigar as posições objetivas dos atores dentro das redes, assim como as estruturas de vínculos que condensam e condicionam as lógicas de sua atuação.

Essa rede permitiu identificar  as conexões políticas das associações. A sociedade civil se modernizou, diversificou-se e se especializou funcionalmente, tornando as ecologias organizacionais da região mais complexas, sem que essa complexidade implique a substituição de um tipo de ator por outro.  Em uma análise comparativa as Associações civis são mais conectadas do que as chamadas "ONG's".  vitalidade dos movimentos sociais, semelhante à das ONGs. As associações civis, formadas pelos próprios interessados, mostram conexões ativas tanto com atores públicos-governamentais/não-governamentais e privados. 

Assim, os estudos de Lavalle  contradizem a tese senso comum da “onguização”. Parafraseando Mark Twain, ao escrever a um jornal que havia noticiado sua morte: As Notícias da Morte do Movimento Popular são um pouco Exageradas :-) Todos os dados obtidos contrariam diagnósticos dos "viúvos dos anos 80", que insistiam de que a sociedade civil atual seria formada de organizações orientadas principalmente para a prestação de serviços e a trabalhar com assuntos públicos de modo desenraizado ou pouco voltado para a população de baixa renda.

Lavalle conclui que “as organizações civis passaram a desempenhar novas funções de intermediação, ora em instituições participativas como representantes de determinados grupos, ora gerindo uma parte da política, ora como receptoras de recursos públicos para a execução de projetos”. Absorver novos papeis não representou a perda dos anteriores, mas a sua transmutação. Assim, “as redes de organizações civis examinadas são produto de bolas de neve iniciadas em áreas populares da cidade e por isso nos informam a respeito da capacidade de intermediação das organizações civis em relação a esses grupos sociais..”

Outros estudos confirmam as conclusões deste trabalho, como os de Paulo Velho (UFES) e Lígia Lüchmann (UFSC) para quem “a sociedade civil é hoje funcionalmente mais diversificada do que costumava ser, com atores tradicionais coexistindo com os novos”. Assim, estudos como o de Lavalle vêm corroborar a ideia de que tendências mais visíveis não podem ser tomadas como hegemônicas e de que a sociedade tende a ser muitas coisas ao mesmo tempo. As classificações lineares ou evolucionistas servem para dar tranquilidade intelectual, ideia de controle e entendimento; mas não se verificam no tecido social. Para fora das portas da Universidade, o mundo segue extrapolando a teoria. 

Ao assumir a heterogeneidade e complexidade das organizações civis, há implicações não só para a análise, mas para a ação política e pública. Por exemplo, em relação à regulação sobre o terceiro setor. A heterogeneidade demanda um marco de análise menos engessado e, em tempos de definição do Marco Civil, pede leis menos restritivas, que não pretendam uniformizar; mas se concentrem em oferecer segurança jurídica.

Afinal,  já está cientificamente provado que a torcida do Flamengo está errada :-); logo a realidade não segue a opinião da maioria. Não concorda? Consulte sua timeline... :-)


Para ir além
  1. GURZA LAVALLE, A. e Bueno, N. S. Waves of change within civil society in Latin America: Mexico City and Sao Paulo. Politics & Society. v. 39, p. 415-50, 2011
  2. Mobilidade dos Movimentos Sociais, FAPESP, Fev 2014. MFerrari 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

MANDELA ou TIO BARNABÉ?














Mandela foi provavelmente o maior líder político do pós-guerra.

Mandela escapou da sina de "morrer novo como herói ou viver tempo suficiente para se tornar um vilão".

Mas, não conseguiu evitar a docilização de sua imagem, como Gandhi, transformado em líder hippie e Che, em estampa de camiseta de grife.

O mundo pop, com a ajuda do CNA, transformou Mandela em um papai, dançando, sempre sorridente e bonzinho.

Onde havia um líder de esquerda (comunista, não socialdemocrata budista de Higienópolis), duro, firme, que não se esquivou de articular e apoiar a luta e a resistência armadas; colocou-se a imagem de um papai-noel político, uma espécie "Tio Barnabé”, negro sábio e contente.

Onde havia um polemista, criou-se uma unanimidade. E a unanimidade é inócua. Onde havia Rolihlahla (nome de “batismo”, que em Xhosa, significa “que traz problemas”), surgiu o Madiba, algo como um ancião e guia de sabedoria.

Mandela foi forte politicamente. Demonstrou  sabedoria de Madiba e habilidade política para conduzir uma transição sem derramamento de sangue em grande escala. Foi um mestre político ao trocar o "perdão" aos brancos pelo poder para seu partido e pela anistia ao passado. Foi extremamente hábil e forte para  liderar a transição de uma sociedade formal e legalmente desigual em uma sociedade, ainda mais desigual, mas formalmente igualitária.

Mandela foi fraco administrativamente e, em troca da pacificação do CNA, entregou seu governo (e os sucessores) para uma elite partidária ineficiente como gestora pública e profundamente corrupta. De parte dos brancos, o preço que Mandela pagou foi acordar o esquecimento e anistia dos seus (e de tantos outros) algozes, torturadores, ativos agentes ou simplesmente coniventes com as décadas de Apartheid. A Comissão da Verdade por lá nunca cumpriu seus objetivos e metade de seus membros terminou por renunciar descontentes com os rumos do "abafa". 

Docilizado, o legado de Mandela passou a servir para perpetuar o poder do CNA (um tipo de PRI versão sul-africana), marcado por sucessivas violências, restrições a imprensa e corrupção que beneficia uma pequena elite negra. Serviu para que os brancos da África do Sul ganhassem ainda mais dinheiro. Não se fez reforma agrária, e os oligopólios mineradores e do agronegócio prosperaram como nunca antes. 

Mandela foi essencial para a reinserção sul-africana na política e economia mundiais, trazendo capitais externos. E a África do Sul pós Mandela aumentou a desigualdade (veja gráfico) e a violência. 

Na África do Sul de hoje, de cada 10 presidiários, apenas um é branco; há a 2ª maior taxa de estupros do mundo, sendo que 8 em cada 10 vítimas são negras; e a 3ª maior taxa de assassinatos.  A Polícia sul-africana é a 2ª que mais mata no mundo (perde para a nossa:-(.[1]

No resto do mundo, a versão "Madiba" ajudou os outrora apoiadores do regime branco a virarem heróis da liberdade. Por 30 anos, EUA e Europa fizeram vistas e dinheiro grosso na AS. Também usaram o repressor e bem equipado exército sul-africano para apoiar as guerrilhas antimarxistas em Angola e Moçambique assim como atiçar clandestinamente outros conflitos, como Namíbia, Congo e no antigo Zaire.

No Brasil, a imagem do bom velhinho vem contribuir para deixar intactos nossos preconceitos e, permite-nos seguir com o extermínio de jovens negros e todas as outras formas disfarçadas de violência preconceituosa cotidiana contra os negros, até hoje considerados como mercadoria.

Morto, Mandela, que foi o maior herói político de uma era, seguirá a travar uma luta, desta vez contra a jaula da memória coletiva formatada pelos poderosos, que transforma tudo em show, produto e efêmeros trendtopics.




[1] Fonte: Crime and Violence Global Stats;  www.unodc.org