segunda-feira, 7 de junho de 2010

O que fez Fernandinho virar Beira-Mar e os preconceitos do Senso-Comum

Se uma boa pergunta vale mais do que duas boas respostas, leia a matéria de “O Globo” deste Domingo. A pergunta é o que faz de um menino um mega-bandido, cruel e temido. O jornal foi atrás de outros colegas de escola. Em tom de espanto e texto verifica que nenhum dos “coleguinhas” de Beira-Mar virou bandido. A conclusão risível da matéria, tirada de um depoimento é que “Não é porque você nasce e mora numa comunidade carente que você vai virar bandido”.


O preconceito se revela na matéria partir da premissa de Beira-Mar seria explicado pelo contexto do entorno. No caso, pobreza. E constatar a “surpresa” de que isto não é verdade. Já se sabe há décadas que não há nenhum dado que mostre correlação entre comportamento criminoso e classe social. Mesmo que o preconceito nos leve a achar que a maioria dos criminosos é pobre.

A matéria conclui que cada um escolhe a vida que leva. O mesmo que dizer: nós os não pobres não somos culpados por Beira-Mar.

A pergunta é válida na medida em que ela leve a descobrir o que informa as decisões de uma criança. Os 3 equívocos da matéria: a) afirmar que tudo é escolha, mas não apontar que as escolhas possíveis não são as mesmas para todos. b) procurar a explicação para Beira-Mar dentro da comunidade dele.; c) transpor os contextos.

A primeira falha é o fato de que, embora haja um sempre existente grau de escolha em toda decisão humana, isto não significa que tudo são escolhas. As opções são feitas dentre as existentes e segundo os informadores da escolha (valores, exemplos, incentivos, etc...). Ter um mínimo de opções e acesso a informadores funcionais de escolha é um direito. Uma criança em uma área de conflito não tem acesso às mesmas escolhas e informadores. Ela é privada de direitos inalienáveis dela. Limitar as escolhas e restringir os informadores da escolha são responsabilidades da família, estado e sociedade.

O segundo erro, típico de um preceito caro à classe média é achar que Beira-Mar é um produto da “favela”. A indústria criminosa do tráfico do qual faz parte é produto do contexto social. Fernandinho escolheu ser um bem-sucedido homem de negócios crimonosos. A "oportunidade"que ele aproveitou veio do contexto de Brasília, do Palácio da Guanabara, prefeituras, da corrupção de órgãos públicos, do sistema jurídico moroso e excludente, do centro financeiro paulista, da matriz de valores da sociedade de classe média, dos países consumidores, etc. Enfim, a escolha de Beira-Mar foi dele, o contexto que lhe permitiu se tornar um dos maiores atacadistas de drogas do mundo  é o exponencial aumento no consumo de drogas, a cartelização no tráfico e a ineficiência da sociedade e estado em detê-lo. 

Por fim, o derradeiro erro da matéria é transpor o contexto da infância de Beira-Mar e seus colegas para a das crianças hoje. A matéria mescla a investigaçao com a discussão sobre a educaçao em áreas de risco, em 2010. Duas diferenças básicas foram esquecidas. Uma nas crianças da escola, outra no contexto. Uma análise mais cuidadosa teria revelado que a escola pública de 1975, tinha uma “clientela” distinta. Na época, quase 25% das crianças pobres estavam fora da escola na cidade do Rio. Isto nos faz concluir que a turma de Beira-Mar não tinha a mesma composição social (em relação ao entorno) de uma turma atual, quando quase 100% crianças pobres vão à escola. Em segundo lugar, a diferença no contexto. A insegurança e violência atuais são muito mais sérias e limitadoras do que há 35 anos. A turma de 1975 não viveu na mesma comunidade da de 2010. Nao terá as mesmas escolhas.

A resposta tem seus erros, revela preconceitos, mas a pergunta continua boa. Afinal, não é porque a pessoa é jornalista de O Globo que não vale a pena ser lida :-)



(trechos da matéria)

“Dos 23 alunos que estudaram juntos há mais de 30 anos numa escola pública em Caxias, apenas o traficante optou pela vida no crime

Em 1975, quando começou a estudar na Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha, na comunidade da Beira-Mar, em Duque de Caxias, Luiz Fernando da Costa tinha 8 anos e era um aluno aplicado e participativo. Da 1aà 4asérie, não repetiu de ano, nunca ficou em recuperação e sempre passou com bom desempenho.

Trinta e cinco anos depois, Luiz Fernando virou Fernandinho BeiraMar, o mais famoso bandido brasileiro, um traficante e homicida condenado a mais de cem anos anos de prisão que cumpre pena no presídio federal de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul.

Basta acompanhar a trajetória dos colegas de turma de Beira-Mar para derrubar a premissa de que o caminho do crime é a única opção para quem nasce pobre e favelado.

Dos 23 alunos que fizeram juntos as primeiras quatro séries do atual ensino fundamental na Joaquim da Silva Peçanha, de 1975 a 1978, apenas Luiz Fernando optou pela vida no crime. O restante driblou a pobreza e as drogas, e se tornou exemplo de superação entre parentes e amigos.

Nos últimos dois meses, O GLOBO foi em busca dos coleguinhas de escola do traficante, para contar o que aconteceu com eles três décadas depois. Encontrou relatos emocionantes de pessoas bem-sucedidas, sobre oportunidades perdidas e aventuras, exemplos de muita força de vontade para vencer na vida.

Dos 22 amigos que estudaram com Luiz Fernando, um morreu: Jorgemar da Costa Fróes, ex-soldado da Brigada de Paraquedistas do Exército, faleceu aos 35 anos de insuficiência respiratória e tuberculose no dia 12 de agosto de 2002. Filho de um tenente do Exército, jogou por terra a carreira militar para viver de biscates e em rodas de pagode, mas sempre longe do crime e da droga. Jorginho Mocotó, como os amigos o chamavam, não chegou a passar da 7asérie do ensino fundamental. Está enterrado no Cemitério do Anil, em Duque de Caxias.

Dos outros, 13 são pessoas bem-sucedidas, mesmo quando desempenham um ofício relativamente simples: de cortar cabelos a dirigir Kombis. No grupo, também há suboficial da Aeronáutica, policial militar, marceneiro, mecânico, professores universitários e frentistas de posto de gasolina. Sete ainda vivem na comunidade; outros se casaram e deixaram o lugar. A maioria sequer concluiu o ensino fundamental. Uma professora universitária foi morar nos Estados Unidos. Tem um PM vivendo no Nordeste e um mecânico trabalhando na Base Aérea de Anápolis, em Goiás, onde ficam caças supersônicos da Força Aérea Brasileira (FAB). Oito não foram localizados ou não quiseram falar com o jornal, mas nenhum deles tem antecedentes criminais.

Ivan Chiara fez o antigo primário na Joaquim da Silva Peçanha. Daquele tempo, guarda boas recordações de todos os colegas de classe, inclusive de Luiz Fernando: - Leio muita história dele, mas nem todas são verdadeiras. O estudante Beira-Mar era um ótimo aluno. Depois nos afastamos, perdemos contato. Ele foi para outro caminho.

A professora Luciana Pires Alves, doutoranda em Educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalha na rede municipal de Duque de Caxias desde 2001. Entre 2004 e 2007, estudou o modelo de aprendizagem de crianças do ciclo de alfabetização da Favela Beira-Mar, para escrever um artigo acadêmico. Conheceu alunos pobres, mas cheios de sonhos.

- Apesar da pobreza e da carência material, as crianças frequentavam as aulas nas escolas da região e faziam planos para o futuro longe do crime. Dizer que pobreza e carência material são condições determinantes para o crime é um absurdo. Não conheço nada científico confirmando essa tese de que negro, pobre e favelado tem uma tendência para o crime - diz Luciana.

No Rio, cerca de 1,5 milhão pessoas vivem em favelas e apenas um percentual muito pequeno está envolvido em crimes.

Mas motivos não faltam para que áreas de risco recebam investimentos em educação.

Para a doutora em Antropologia Neiva Vieira da Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é preconceituosa a ideia de que pobres e moradores de favelas estão fadados a se tornarem bandidos: - Os moradores são permanentemente criminalizados por isso. Isto se deve ao fato de recair sobre os espaços de habitação popular, particularmente sobre as favelas, uma representação que perpetua uma série de preconceitos e estereótipos a respeito dos setores populares em nossa sociedade - afirmou a antropóloga.

Formada pela Universidade de São Paulo (USP), a antropóloga Ana Paula Mendes de Miranda, professora do curso de pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflito, observou que vários estudos demonstram que, quando a escola reproduz práticas de intolerância às diferenças, a consequência é muito pior: os estudantes acabam construindo uma relação de ódio ou descrença com a escola. O professor universitário de História Medieval e Religião Marcelo Guerra Dib concorda: ex-colega de turma de Fernandinho, ele só têm elogios à escola Joaquim da Silva Peçanha do seu tempo: - Os professores não faltavam, cobravam empenho nas aulas e quando algum aluno faltava, uma professora ia até a casa dele para saber o que tinha acontecido - lembrou Marcelo.