sexta-feira, 1 de abril de 2011

DESENVOLVIMENTO E POLÍTICA: COSTA DO MARFIM


Curiosa a memória e seus filtros. Faz 20 anos, muitos fatos talvez mais relevantes se foram, mas nao me esqueço do último dia de uma visita impressionante. O Sol refletido no turquesa da baia da Abdijan dizia, sem pedir licença, um enfático “bom dia” para os hóspedes do hotel. A cortina não era párea para uma luminosidade  que contradizia o relógio, onde ainda aparecia 05h50min. Abdijan dispensa despertadores.

Avenidas largas sonhos de governos megalomaníacos e suas majostosas palmeiras, combinavam com ruas desorganziadas de um passado colonial recente. Transplante europeu deslocado. A herança do colonizador, colonizada. Gente colorida e suas conversas sempre empolgadas. Sorrisos e protestos evidentes. Tudo muito evidente como convém neste lado do mundo. Os tambores sincronizam o coração. A piada e o sorriso sempre presentes, mesmo ou principalmente, na tragédia. O oceano não separa os fortes traços de culturas africanas que nos vieram de toda aquela região. Traços que são, assumidamente ou não, o centro do que chamamos de cultura brasileira. Para um brasileiro, a Abdijan  de 1991 era como a casa de um familiar.

Foram dias de intensas boas surpresas em cidades e vilas alcançadas por estradas muito mais bem cuidadas que as de grande parte do interior brasileiro. Pequeno, então pacífico e com uma distribuição fundiária quase em padrões europeus, a Costa do Marfim desafiara meu pessimismo em relação ao futuro da África. O país vivia um período de democratização, depois de mais de uma década de relataiva prosperidade, mas de um único presidente. Se as Democracias talvez se pareçam, as ditaduras são sempre singulares. Esta tinha um parlamento e um primeiro-ministro eleitos, mas um só partido. Substituía as habituais brutais forças de Inteligência por uma rede de escolas públicas, presentes em toda comunidade. As escolas eram os pontos tanto de controle como de distribuição de benesses sociais. Na liderança um líder carismático, libertador e herói nacional, com preocupações sociais contraditórias. Era o que hoje acostumamos chamar de populista. O presidente, outrora auto-proclamado, agora tinha a legitimidade das urnas, nas primeiras eleições pluripartidárias e fiscalizadas.

As escolas surgidas para controlar haviam se transformado em núcleos comunitários. Cada comunidade, por menor que fosse, tinha sua organização. Jovens, oriundos da primeira geração alfabetizada, chefiavam conselhos comunitários. Era estimulada a crítica a tudo e todos, menos ao presidente. Esta mistura de estabilidade de um regime de partido único, em um país que já multipartidário, a liberdade empreendedora, um povo aberto a estrangeiros e um Estado que não insistia em regular os detalhes da vida, atraiu investimentos de toda a parte. Também foi o contexto que fez da Costa do Marfim um ponto de encontro e diálogo diplomático para países vizinhos então (e a maioria até hoje) em crise.

Esse ambiente de relativa paz, taxas de escolarização superiores à média africana e a boa infra-estrutura possibilitavam uma exploração mininamente racional das riquezas minerais (presente abundamente em quase toda a região, uma das províncias minerais mais ricas do mundo). Naquele ano, o país completava 20 anos de melhoria ininterrupta no seu Índice de Desenvolvimento Humano. A continuar a tendência, em mmenos de 2 décadas, seria um país de desenvolvimento médio e o 3º IDH da África. Esta foi a afirmação que ouvi atento e cédulo de um painel de economistas, chamados pelo Banco Mundial e pelo Banco Africano de Desenvolvimento. Pensava presenciar um país que abandonava a pobreza.

As Organizações humanitárias também eram otimistas. Reduziram ou fecharam seus programas de assistência no país. Abdijan, por sua paz e infra-estrutura, era então a sede administrativa sub-regional de muitos organismos do sistema internacional.

Mas, política não segue tendência estatística. E não há conquista que não possa ser perdida. Desde a década de 90 a Costa do Marfim alternou crises políticas com períodos de normalidade, cada vez mais raros. Conflitos institucionais evoluíram para guerrilhas, Golpes de Estado e guerras civis. Os investimentos se foram pouco a pouco. As agências humanitárias nunca retornaram. Restaram apenas os investidores de alto risco e baixa responsabilidade que trocam diamantes por armas ou até drogas.

Hoje a Costa do Marfim vive talvez os últimos dias da atual guerra civil. Seja qual for o desfecho, outras guerras provavelmente seguirão. A infra-estrutura do país acabou. Da rede de escolas públicas, restam ruínas. Estima-se que as taxas de analfabetismo estão entre as cinco piores do continente africano. Quase 200.000 crianças (abaixo de 16 anos) estão arregimentadas nas forças bélicas. Um levantamento do UNICEF contou quase 10000 crianças órfãs. com menos de 12 anos. somente nas ruas das 4 principais cidades do país. Dois terços das crianças marfinesas sofrem de desnutrição. Todo o ganho social das décadas de 70 e 80 se foi. Mesmo que a paz chegue ao país (e, em curto prazo, não há indícios que virá), seriam necessárias décadas e bilhões para voltar ao ponto de 1990. Até lá, toda uma geração de crianças marfinesas terá morrido ou sobrevivido em condições de fome, violência e abandono.

Costa do Marfim e tantos outros exemplos só corroboram o que se sabe e freqüentemente se tenta esquecer. Há desafios econômicos, sociais, educacionais, mas o Desenvolvimento é uma tarefa primeiramente Política (com o P mais maiúsculo que se pode ter) e sem política não pode avançar.

O Desenvolvimento é um processo sem atalhos, mas com muitos retornos.