terça-feira, 17 de maio de 2011

BRANCOS E NEGROS: MAIS OU MENOS QUASE ISTO

José de Souza Martins é um analista ímpar. Combina uma historiografia dos grandes pequenos movimentos com Sociologia “da boa”, mescla muita Economia e reveste tudo com um profundo compromisso humanista. Martins não faz ciência para exibir, pendurar na parede ou mandar para o prelo. É dos que ainda acredita que ciência é UM DOS caminhos para mostrar o que não sabemos a fim de que sejamos o que devemos ser. Um homem conservador em sua radicalidade.

É do Professor Martins o artigo (dia 8/5, Suplemento ALIAS) abaixo sobre as mudanças na “cor” dos brasileiros, apontada pelos dados preliminares do Censo 2010. Meu mestre Martins traz as estatísticas para um debate sociológico acerca do preconceito, auto-afirmação e, principalmente, identidade. Toca neste traço que parece marcar a sociedade brasileira, a média. Gostamos de nos afirmar médios.

Eu achei que o artigo um "pouco Gilberto Freire demais", ao equivaler média a ponto de equilíbrio. Armistício não é o mesmo que Paz. Minha ousadia em questionar o mestre é  que talvez a declaração de média não signifique que agimos como tal. "Apenas" aponta que nos achamos assim. Mas, mesmo se você aceitar este meu "porém", a auto-declaração traz também revelações. Afinal, nossas mentiras dizem mais a nosso respeito do que as verdades.

Vale discordar do Professor Martins , só não vale não se deixar ser provocado por ele.



Radicais do meio-termo

(JOSÉ DE SOUZA MARTINS)


A divulgação dos primeiros dados do Censo 2010 constitui o esboço de um retrato do brasileiro, sua cara e mesmo sua mentalidade, suas identificações e vacilações. As primeiras notícias dizem que os brasileiros ficaram "mais escuros" ou "menos brancos", o que é improvável, pois este país se constituiu sobre a escravidão indígena e a escravidão negra e só nas décadas finais do século 19 tivemos a imigração maciça de propriamente brancos. A tendência provável seria a do aumento da mestiçagem, já que o Brasil desde as origens é essencialmente um país de mestiços, ainda que culturalmente preconceituoso. Se politicamente estimulada ao branqueamento, em decorrência de uma deliberada política de imigração de trabalhadores brancos, histórica e culturalmente a sociedade brasileira criou e disseminou valores que justificam e favorecem a mestiçagem. Somos um país mameluco e mulato.


O Censo 2010 parece confirmar essa tendência histórica. Parece porque a consciência da diferenciação de cor entre nós é tênue, limitada à pigmentação da pele e distante de distinções propriamente raciais. Os brancos perderam a consciência da diferenciação de brancuras que há entre originários da imigração eslava, da latina, da germânica. Os negros também perderam a consciência de sua diferenciação étnica, originários de distintas nações africanas. Os amarelos são os que ainda mantêm a consciência das diferenças profundas entre japoneses, chineses e coreanos.


O grande número dos que não indicaram a respectiva cor nos últimos três censos demográficos é um enorme problema para decifrar a autoclassificação por cor. Em 1991, eram 534,9 mil, quase tanto quanto os amarelos e quase o dobro da população indígena. Em 2000, a coisa ficou pior: 1,2 milhão não se definiram quanto à cor, quase tanto quanto a soma de indígenas e amarelos. Em 2010, esse número caiu para 315 mil, o que afeta menos a classificação por cor, mas ainda afeta. Essa redução de algum modo tem a ver com a campanha entre os afrodescendentes para que se identificassem no censo como pretos.


A campanha parece que deu parcialmente certo no caso da população preta, que dobrou de 1991 para cá e saltou de 10,6 milhões, em 2000, para 14,5 milhões, em 2010. No entanto, o salto foi proporcionalmente modesto nos últimos dois censos, de 6,2% da população brasileira para 7,6%, cerca de 4 milhões de pessoas, o mesmo tanto do intervalo censitário anterior. Enquanto isso, o grupo assumidamente mestiço dos pardos, teve sua proporção aumentada de 38,5% para 43,1%, 17 milhões de pessoas, a taxas bem desiguais, respectivamente 1,4% e 4,6%. O grupo branco, que havia tido um grande crescimento entre 1991 e 2000, de mais de 15 milhões de pessoas, diminuiu quase 250 mil pessoas entre 2000 e 2010.

Se levarmos em conta a campanha em favor da autoidentificação dos mestiços como negros, tanto a modesta redução do grupo branco quanto o acentuado crescimento do grupo pardo sugerem que a campanha não sensibilizou os destinatários. O significativo crescimento do grupo negro parece dever pouco a essa campanha e muito mais a seu próprio crescimento vegetativo. Mesmo sendo o grupo com maior crescimento do que os outros grupos, nos últimos 20 anos, esse ritmo de crescimento (dos negros) caiu em 6,5% na última década. Não se pode deixar de considerar que campanhas para afirmação de identidade em favor de um grupo, como o negro, sempre motivam os grupos não abrangidos a também afirmarem a sua, coisa que acabou favorecendo os brasileiros identificados com a ideologia difusa, mas consolidada e tradicional, da mestiçagem.


Se considerarmos que o período entre os dois últimos censos foi o de algum êxito da reivindicação de políticas compensatórias restritas à população negra e de um significativo acolhimento da demanda de racialização da sociedade brasileira durante o governo Lula, através da política de cotas, os resultados do censo dão muito que pensar. Eles sugerem a opção pela tradição brasileira do meio-termo em relação a tudo, nas opções mornas pelas médias e na recusa dos extremos. Estamos vendo isso em outros campos, no declínio dos movimentos sociais de confronto, como os relativos à questão agrária, os estudantis e o próprio movimento operário.


No caso da cor da pele, a opção preferencial pela categoria intermediária dos pardos indica um esforço consciente para evitar classificações estigmatizadoras, como a de negro (mas, também, a de branco, já que ser branco passou a ser politicamente incorreto). A aceitação da política compensatória das cotas e mesmo de outras políticas de ação afirmativa pode estar levando à manifestação da nossa cultura do preconceito, não como preconceito contra o negro, embora o seja, mas preconceito contra os beneficiados por favorecimentos que anulam a ideologia da valorização do trabalho e da competição entre nós disseminada com o fim da escravidão negra. Os dados indicam que a aceitação de compensações raciais não significa a aceitação da identidade racial.


 PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É AUTOR DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM SIMPLES (CONTEXTO)